Havaianas: curiosidades, inquietações e questões antropológicas

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“As legítimas” estão em páginas duplas nas revistas, em preciosos segundos na televisão e expostas em outdoors pelas ruas do Brasil atual. Os chinelos Havaianas estão ainda nos pés de inúmeros brasileiros: elas conquistaram há tempos os humildes e ásperos pés de pedreiros, empregadas domésticas, “pé-rapados” e afins e alcançaram as “finas” e bem-cuidadas patas de cerâmica de manequins das boutiques, para agradar os mais exigentes pés do Brasil e do mundo.

A trajetória das Havaianas se inicia em 1908, como simples alpargatas. Passa para o status de sandálias top em algumas décadas e culmina em coleções assinadas por renomados estilistas e cartunistas. Há peças confeccionadas com cristais e diamantes, para a clientela mais afortunada e conta, também, com modelos coloridíssimos que inovam a cada temporada.

Antes, é preciso considerar que data de antes de Cristo o primeiro sapato da história criado tão-só para afastar os pés do solo repleto de micróbios. Nesse início do uso de sapatos – na verdade, de seus primos pré-históricos –, há uma “disciplina” do andar, um habitus de natureza social designado pelo filósofo Marcel Mauss como uma das “técnicas corporais”. A frase célebre de Mauss, “o corpo é o primeiro e mais natural instrumento do homem”, evidencie o modo como os homens, sociedade por sociedade, história por história, sabem e se servem de seus corpos. Logo, comportamentos como o caminhar são específicos em cada época e em cada sociedade.

Apesar de serem primeiramente úteis, a partir do momento em que se vestem os sapatos por uma razão estética ou de status symbol, por motivações psicológicas ou sociais, eles passam a ser considerados uma “moda”. Para diferenciar-se dos outros, o homem “personaliza” seu corpo através de um elemento que acrescente a ele, isto é, a moda se situa – ou se inicia – no ponto em que finda essa utilização “funcionalística” natural do corpo.

A moda, enquanto fenômeno sócio-cultural e econômico, muda como uma transformação sintomática da história, podendo servir de indicador das bases de valoração estética e critica de um determinado período histórico, evidenciando o “gosto da época” ou o “ar do tempo”. De acordo com Roland Barthes, no texto de moda, o mundo é sempre submetido ao fator tempo, especialmente o festivo, como férias, fim-de-semana e a primavera. No Brasil, tais ocasiões remetem ao “estar à vontade”. E é o que se confirma nas campanhas publicitárias com uma atmosfera de informalidade presente nos sapatos abertos nas praias, piscinas, passeios e nas cidades nos dias mais quentes. Inspirados na idéia de um Brasil festivo e casual, tais discursos midiáticos fazem uma referência cultural ao “ar do tempo” e do clima do País.

História: Passo a passo

O escocês Robert Fraser pisou no Brasil pela primeira vez em abril de 1907. No País, ele se fez sócio de um grupo inglês para construir a Fábrica Brasileira de Alpargatas e Calçados no bairro da Mooca, na capital paulista. Em 1908, a fábrica começou sua produção de Alpargatas Roda, Lonas e Encerados. As alpargatas eram utilizadas por trabalhadores na colheita de café – porque não feriam os grãos – e os encerados eram usados nos terreiros de secagem. Em 1909, a empresa tem seu nome modificado para São Paulo Alpargatas Company S.A.

Brevemente acompanhando os acontecimentos históricos que marcaram o último século – passando por Primeira Guerra Mundial, Gripe Espanhola na cidade de São Paulo, quebra da bolsa de Nova York, boom da borracha no Brasil, Segunda Grande Guerra etc. – o que se pode pontuar sobre o desenvolvimento das Alpargatas é sua destreza em arriscar e ponderar as direções da empresa diante dificuldades financeiras. Em 1940, a firma é batizada definitivamente como São Paulo Alpargatas S.A.

As sandálias Havaianas são lançadas em 1962, inspiradas nas sandálias de dedo japonesas, as Zori. Confeccionadas com borracha, uma matéria-prima inteiramente nacional e de custo reduzido, as sandálias eram consideradas duráveis e confortáveis e, segundo os próprios fabricantes, eram “a mais simples resposta à necessidade de proteger os pés”.

O sucesso fez com que as Havaianas fossem copiadas, e as cópias passaram a ser chamadas de “fajutas” nos comerciais da marca. Nos anos 70, uma campanha publicitária estrelada pelo comediante Chico Anysio foi lançada para aclamar a assinatura “As legítimas”, forma encontrada para diferenciar o produto do grande número de imitações que começaram a ser vendidas.

A partir de 1994, com o advento do Plano Real ampliando o poder aquisitivo da população brasileira, finalmente a empresa lança as Havaianas Top, modelo monocromático das sandálias tradicionais. Acompanhado por um conjunto de ações de marketing, o lançamento bem-sucedido de mais um produto da “família” Alpargatas se dá, pois: “Junto com as novas Havaianas Top, surge um novo discurso publicitário e uma nova voz que emana do mesmo. Uma voz que precisa sublinhar o desejo, estimular a compra e dignificar o seu consumidor. Enfim, fazer das Havaianas Top um desejo de consumo”, analisou Marlon Muraro, nos Cadernos de Pós-Graduação de Letras do Mackenzie.

Desde então, com sucessivos recordes de vendas, as exportações passam a fazer parte do planejamento estratégico e a Alpargatas conseguiu posicionar sua marca nos melhores pontos de venda do mundo, como a requisitada Printemps em Paris. Em 2002, as Havaianas completaram seu 40º aniversário participando de uma mostra sobre a América Latina nas Galeries Lafayette em Paris e figuraram nas vitrines da sofisticada grife Gucci em Milão. Em 2003, as apostas mercadológicas foram a exposição das “brasileiríssimas” em publicações de editoriais de moda na revista francesa Elle e na norte-americana Cosmopolitan. Outra tática foi a customização das sandálias, com a promessa de exclusividade para o consumidor, com designs personalizados.

Havaianas para todos

As marcas concorrentes parecem não conseguir superar a propalada qualidade de ”As legítimas”, as sandálias mais democráticas de que se tem notícia, que calçam do mais pobre ao mais rico, como supostamente dizia o escritor Jorge Amado.

As criativas campanhas publicitárias da marca, sempre com a participação de artistas famosos em situações inusitadas e cômicas, chamam a atenção do público como se o convidasse para participar de minutos da vida da “celebridade”. Sejam em casa, na rua, no consultório médico, as sandálias made in Brazil acompanham os artistas em qualquer lugar.

As primeiras campanhas publicitárias da marca eram baseadas em depoimentos de artistas famosos usando as Havaianas, o que proporcionou certa credibilidade ao produto. Já na série de filmes publicitários mais recentes, a presença de artistas continua, mas destaco uma das publicidades: um casal de turistas brasileiros está perdido em um aeroporto em Frankfurt. Buscando informações, o referencial do casal são pessoas usando Havaianas – supostamente brasileiras, porém, posteriormente descobertas como estrangeiras. Somente após três tentativas, o casal encontra uma brasileira que também usava as sandálias. A idéia reforça o slogan, que passou de “Havaianas, todo mundo usa” para “Havaianas, o Mundo todo usa”.

Considerações finais

A familiaridade com o produto Havaianas permitiu uma análise crítica de seu valor simbólico no Brasil, quer por ferir nossas discriminações ou por corroborar a hipótese de uma exaustiva representação de um País democraticamente multicultural.  A este ponto, cabem três conclusões sobre a publicidade na mídia, sobre a condição pós-moderna do produto nacional e sobre a representação de um Brasil.

Primeiro ponto: O discurso publicitário em cartaz, no contexto de 1962, foi o diferencial motor para a ascensão simbólica das Havaianas. Daquela época até os dias atuais, o simples objeto de vestuário passou à categoria de moda, ascendo a uma significação estética, a chinela rasa dos armazéns cedeu lugar à nomenclatura Havaianas. A palavra criou um mito.

No momento posterior, apesar de sua associação com as camadas populares, atualmente as Havaianas são “democráticas”, no sentido amplo da palavra. Elas precisaram passar por uma re-significação no imaginário nacional para serem consumidas por todos. Para os mais modestos, há modelos que custam cerca de R$ 7. Para os mais ricos, as peças disponíveis custam até R$ 58 mil.
Terceiro ponto: a mística brasilidade – marcada pelo clima tropical e o calor humano, um povo colorido e alegre, de cidades belas como em cartões-postais – se repete nas Havaianas, na maioria de suas publicidades.

Notas
* Para assistir às peças publicitárias, acesse os “Filmes On-line” no site oficial www.alpargatas.com.br
* A história das Alpargatas e das Havaianas é brevemente narrada a partir dos respectivos sites oficiais.

Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Mitologias. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BARTHES, Roland. Sistema de moda. São Paulo: Companhia Editora Nacional: Edusp, 1979.
DORFLES, Gillo. Modas & Modos. 2ª Ed. Lisboa: Edições 70, 1979.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.
MURARO, Marlon Luiz Clasen. O ethos no discurso publicitário das sandálias Havaianas. São Paulo: Caderno de Pós-Graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2003. Vol. 2, número 1, p. 57-67.

Mais estudos e matérias sobre as Havaianas

GARCÍA, Sílvia. A poção mágica do sucesso das Havaianas. São Paulo: Aduaneiras, 2004. Disponível on-line:

http://cursos.aduaneiras.com.br/treinamento/estudecomex_2004/site_estudecomex/marketing.htm

GOMES, Adriana Salles. “Havaianas com o mundo a seus pés”. In: HSM Management: Dossiê Marketing Epidêmico. Disponível on-line: www.fearp.usp.br/fava/pdf/pdf214.pdf

LUZ, Cátia. “De quem são esses pés?”. In: Época, Edição 212, junho de 2002. Disponível on-line: http://epoca.globo.com/edic/212/soci9a.htm

PEIXOTO, Fabrícia. “As legítimas correm o mundo”. In: Isto É Dinheiro, agosto de 2002. Disponível on-line: http://www.terra.com.br/istoedinheiro/260/negocios/260_havaianas.htm#

RAMIRO, Denise. “O pé-de-meia das Havaianas”. In: Isto É Dinheiro, setembro de 2005. Disponível on-line em: http://www.terra.com.br/istoedinheiro/420/negocios/havaianas.htm

Por Juliana Sayuri

Colaboradores: Colaboradores do Fashion Bubbles

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