Trânsito nosso de cada dia

Quem já viu aquele desenho animado com o Pateta da Walt Disney? Aquele em que ele saindo de casa beija a esposa, filhos, sai para o jardim cumprimenta as flores, as borboletas, os vizinhos e entra no carro. Neste momento seus olhos se enfurecem, ficam vermelhos, as cores ficam turvas e ele se transforma num enfurecido, temível… Motorista.

Assim como eu ou você. Aproveitando cada pequena brecha da fila ao lado pra meter o bico do carro e conseguir uma posição à frente. Acelerando para não deixar o motorista ao lado mudar de faixa. Colando na traseira do veículo lento e acendendo os faróis. Impaciente com o carro da auto-escola, gesticulando, xingando. Uma mãe está para atravessar na faixa de segurança, ela ameaça colocar o pé na guia, mas o farol ainda está amarelo e você está no SEU direito, no SEU tempo e é lógico que ELA deve esperar, você sem dúvida alguma tem muito mais tarefas a cumprir que ela. Melhor parar por aqui, porque já estou ficando com raiva… Onde está a buzina neste teclado?

Às vezes o trânsito diminui, forma-se um engarrafamento e afunila num acidente a frente. Você diminui alguns decibéis do rádio. Será que isso ajuda a visão? Será por respeito? Baixa o vidro escurecido, dá uma olhadinha e segue diminuindo um pouco a velocidade e faz alguma reflexão sobre o caso. Qual teria sido a causa? Imprudência, pressa, desatenção, erro fatal? Já passou. Marca noventa no velocímetro e os decibéis voltam ao normal. Aquilo nada tem a ver comigo, não comungo destas falhas.

Um circo se instalou perto de casa quando criança. Acabei conhecendo um palhaço sem as pinturas e os adereços, foi uma decepção. O cara era feio, sisudo e em nada parecia com aquele que se apresentava no palco. Será que ele queria guardar as gargalhadas para a hora certa? O Pateta em seu filme também se transforma ao volante. Eu acho que também sofremos esta transformação…

No carro, com os vidros escurecidos com a película e protegidos na cabine, estamos travestidos de anônimos que certamente nunca terão rostos, nem nomes, salvo, os envolvidos em algum acidente. Esta é nossa máscara, nossa pintura e adereço.

Com os motoboys não é diferente, são motoristas também, mas tem mais “liberdade de expressão”, além de gesticular e xingar, eles podem quebrar retrovisores e amassar portas. E além da intolerância e egoísmo, ao usar a máscara, os motocas somam também a covardia. Não é que não a temos, é que só eles (normalmente, mas nem sempre) se expressam assim. Mas acredite, não devemos ser diferentes. A diferença é que eles estão pagando mais caro pela máscara que usam. São 5% da frota de veículos e estão envolvidos em 57% dos acidentes.

Vamos lá! A coisa toda é para perguntar o seguinte: O Pateta é o amável sujeito que beija a esposa e os filhos ao sair de casa ou o Pitt Bull ao volante? Quem eu sou? O sujeito contido, divertido, admirável ou mais este louco? Maluco, aliás, são os outros.

Será que o palhaço é palhaço quando não veste sua máscara e não vive o que é?
Será que ele é o que é quando veste a máscara?

O trânsito será nossa falta de escolhas? Um beco sem saída onde temos (ou podemos, sem culpa) ser o que somos? Será ali o espaço da nossa nudez absolutamente verdadeira, livre da polidez domesticada em outros espaços?

Quebro os retrovisores e não me enxergo mais? Será esta uma solução? Tenho medo da violência do outro motorista que socou um velhinho que não oferecia resistência. Tenho medo do desconhecido. O medo é na verdade do reflexo que não é diferente de mim, olho nos retrovisores e ele se parece comigo. Mas age diferente sob a influência (ou anonimato) da máscara que lhe dá os super poderes. Poder de só eu ter pressa, tarefas, horários…

O noticiário ganha ibope com cenas absolutamente estúpidas de acidentes. Se o sujeito não tivesse morrido, deveria estar levando a mão à cabeça e apontando o prejuízo: como fui fazer tamanha tolice? No vidro traseiro tinha a frase “Deus é Fiel”, pois é! Há quem se livre do super poder que dá o volante? Há como se livrar disto que pode ser, lá no fundo, sua própria essência?

Pateta no Trânsito

Vinicius Moura: Empreender tem sido minha vida e escrever é o que me eleva. Os assuntos são totalmente aleatórios.

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