O início da paixão
João andava sozinho e já não suportava mais a solidão. Maria também. Como é de se esperar Maria encontrou João e começaram a sair. Ele é maravilhoso, gentil, divertido.
Ela é companheira, sexy, inteligente. João agora se sentia o sujeito mais feliz do mundo, tinha encontrado alguém como nunca antes em sua vida. Maria não conseguia disfarçar o entusiasmo, os dias ficaram mais claros e as noites mais estreladas… E viveram felizes para sempre? Não!
O que aconteceu?
Passaram seis meses e ELA dizia que ele era muito possessivo, desorganizado e um tanto preguiçoso. Do outro lado ELE dizia aos amigos que era melhor aquele tempo quando iam sozinhos para as baladas, que ela reclama de tudo…
Afinal, o que foi que aconteceu? Não era um conto de fadas? Seria apenas um casal de um sapo e uma gata borralheira sem o beijo encantado, apenas com a meia-noite que os devolve a cruel realidade?
Um fenômeno que se repete
Como explicar este fenômeno tão comum e aparentemente tão sem sentido de lógica? Deve existir uma tradução para estes dificuldades, reclamações e angústias. Estes intraduzíveis discursos é que transformam o relacionamento numa enorme confusão de emoções. O caminho mais fácil para resolver é acreditar que a culpa é do outro.
Veja bem, isso não vai resolver, vai levar sempre ao mesmo fim (cada um para seu lado). Fim que leva a um novo começo (João encontra outra Maria), até que se repita a mesma história que leva sempre ao mesmo fim…
O que deu errado?
João não consegue enxergar Maria, nem Maria a João. Cada um enxerga a si próprio como se olhassem para um espelho. O que se vê no primeiro instante neste reflexo é uma projeção daquilo que se almeja.
O que Maria viu em João?
É mais ou menos assim: Ela olha para ele e vê um sujeito com grande capacidade e habilidades para conseguir um bom ganho em um bom emprego, alguém respeitoso, ousado, sincero e fiel. Qualidades que ela sempre esperou encontrar em alguém. Um João assim não parece perfeito para nossa Maria?
Pois bem! Mas, como um não enxerga o outro, e, se trata de uma projeção, ou seja, sua própria imagem refletida, o que ela vê é seu próprio potencial. É ela que tem capacidade para um ganho maior. Quem sabe nossa Maria tenha até vocação para empreender?
Ela mesma se sente alguém que merece respeito, afinal, sempre foi cumpridora das regras e compromissada com tudo que se propôs fazer. É alguém ousada, sem contar que tem coragem para se adaptar a diferentes cenários, além das situações adversas que se apresentam.
Acontece que Maria está num emprego medíocre. Têm amigas que – apesar de não tão competentes – conseguem resultados muito melhores que os dela. Seus relacionamentos passados não revelam um histórico respeitoso, alguns até ameaçavam com agressão física.
Por fim, ela mesma não está se sentindo ousada, como era em sua adolescência. Ela lembra que naquele tempo quando algo não estava bom como esperado, ela mudava tudo e pronto!
Hoje se sente estagnada esperando dia a dia uma mudança que não acontece. Não é por isso que ela não seja tudo que sempre acreditou ser, é mais provável que Maria se sinta impotente e sem a autoconfiança que a liberta. Entretanto, ela consegue enxergar no outro a capacidade que lhe escapa. Não foi isso que aconteceu quando viu tantas qualidades em João?
O que João viu em Maria?
João, por sua vez, encontra um amigo e começam a conversar sobre seus relacionamentos. Este amigo se afina com João num coro dizendo: “Elas são todas iguais e só mudam o endereço”, o amigo concorda “lugar de mulher é no tanque”… Mas, estes comentários tão tolos nada acrescentam, acabam servindo apenas de desabafo.
A dificuldade de entender porque as coisas chegaram a este ponto continua sem resposta e a conversa não passa de um diálogo de dois machos – que acreditam ser perfeitos e bem resolvidos. Quem dera o problema fosse apenas delas, não é?
O grande propósito nos relacionamentos é justamente a oportunidade de conseguir enxergar no outro, nada mais, do que a si mesmo. Antes de avançar: O que quer dizer com “olhar para o outro e enxergar a si”?
Duas coisas acontecem quando observo meu par:
– Primeiro: vejo que ele tem qualidades que não possuo, mas curiosamente ao elogiar dizendo – você se sai muito bem fazendo isso – não é incomum a pessoa retrucar dizendo que qualquer um pode fazer igual ou melhor, justificando que o que ela faz é apenas o básico…
Quando diz isso, mesmo acreditando ser sincera, sequer desconfia que aquilo que ele elogia e que ela faz de forma tão natural é uma qualidade DELA, não de todo mundo. Isto poderia ser uma habilidade manual, o raciocínio rápido, talento musical, o charme ou um simples sorriso espontâneo.
Quando ele a olha e consegue perceber o valor dela, dá-se aí a chance de notar que ele mesmo pode estar fazendo a mesma coisa, tendo o mesmo comportamento…
Ops! Caiu a ficha? Fazendo a mesma coisa ignoram-se qualidades que justamente os tornam únicos: um conjunto de dons que lhe é muito natural. Tão natural, tão fácil que é difícil acreditar que os outros que os cercam não tenham as mesmas habilidades. Deu para perceber como funcionam os reflexos neste espelho? Descubro meus próprios valores.
Depois daqueles primeiros momentos de paixão absoluta, acontece algo. Ela – que no primeiro momento era maravilhosa – agora tem defeitos que são insuportáveis.
Grita quando bastava falar, não tem controle sobre seus gastos, é obsessiva por arrumação e tantos outros. Nesta faceta do espelho cabe bem uma pergunta: “porque isso me incomoda tanto?”
Uma questão de compensação
A resposta literal você sabe. O que ainda não sabe é que o exagero dela te incomoda porque você tem um exagero de tamanho proporcional no sentido inverso. Ela grita porque quer te acordar, gasta demais porque você não gasta. O relacionamento se equilibra nesta tensão de cabo de guerra.
Conhecer a mecânica destes reflexos faz com que consigamos avançar na resolução de NOSSOS próprios problemas. Sem este entendimento ficamos presos tentando fazer com que o outro se ajuste à nossa deficiência.
Um diz de um lado: “Porque você não faz isso?”, “Porque não deixa de agir desta maneira?” O outro parece não ouvir e em contrapartida o apelo precisa ser cada vez mais alto, mais agressivo, no fim, só sobra gritos e ofensas de um lado e de outro, onde ninguém ouve ninguém.
Entretanto quem não ouve? De novo, é como se estivesse implorando por uma mudança olhando para seu próprio reflexo. É você mesmo que não se ouve. Você diz ao outro o que você mesmo não consegue ouvir.
Diante todas as oportunidades e de toda sua capacidade você se acovarda. Lembra da Maria estagnada? Apesar de João ver nela alguém inteligente, compromissada e capaz, ela está submetida a um emprego muito aquém do que ela merece. O que acontece, é que esta é uma verdade velada, escondida dela mesma e quando ela ouve dele: “Porque você não tenta algo melhor que isso?” Maria responde rispidamente e se defende da verdade que ela não quer ouvir. E não quer ouvir porque terá que arcar com novos compromissos, novas responsabilidades. (Oras, mas não é ela que tem capacidade para mais? Porque este conflito?)
Como estamos falando de espelhos. João estaria dizendo a Maria ou a si mesmo? Não tenha dúvidas de que ele implora a Maria uma mudança, porque ele mesmo não consegue mudar.
Não é novidade de que é mais fácil descobrir a solução para o outro, do que para si mesmo. E por quê? Porque tudo é uma projeção, quando ele aconselha Maria, o que se passa é mais ou menos assim: Ele olha para a situação e pensa: Se eu estivesse num caso como este eu agiria assim… Mas, como não se está envolvido emocionalmente, a solução fica muito mais fácil de ser resolvida – pelo outro, é claro!
Por Vinícius Moura
Namoro, casamento – O que deu errado? Foto: Tempo Espírita
Foto de abertura: Mundo das Tribos
Reflexões através das aulas Junguianas de Marcos de Santis no Instituto Humanae.