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Memória – a não extinção de experiências passadas

O aforismo acima corresponde a uma citação do sábio Srí Maharaj Patáñjali, provavelmente datada do século III a.C. e publicada no Yôga Sútra, opúsculo de…

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O aforismo acima corresponde a uma citação do sábio Srí Maharaj Patáñjali, provavelmente datada do século III a.C. e publicada no Yôga Sútra, opúsculo de sua autoria composto por 195 sútras, aforismos carregados de significados herméticos que condensados em poucas palavras tornam-se blindados aos olhos de um leigo, e por isso mesmo, se faz necessário um mínimo de bagagem metafísica para a compreensão desta ancestral linguagem cifrada.

A sentença do título faz parte do primeiro capítulo da obra, que explica o caminho para se atingir a iluminação, no Yôga chamado de samádhi. O sútra VI descreve os cinco tipos de instabilidade, sendo um deles, o conhecimento baseado na memória. Quando li este livro pela primeira vez, há cerca de uma década, confesso que não entendi porque a memória seria um obstáculo instável à evolução do ser humano, visto que sem ela provavelmente não estaríamos aqui, afinal, em um passado remoto, nossos ancestrais aprenderam pela observação e memorizaram lições de sobrevivência, como por exemplo: fazer fogo, construir cabanas, plantar e, praticamente tudo que envolvia e envolve o desenvolvimento de uma civilização. Vejamos as crianças: não são espelhos dos pais porque memorizam tudo o que eles fazem? Assim como os meus alunos são reflexos de mim, pois assimilam gestos, ações e atitudes do professor. Por exemplo, se nós não tivéssemos memória, como estaria eu escrevendo este artigo?

Conto aqui uma história que presenciei em um Festival Internacional de Yôga, reforçando a retórica da importância da memória: um grupo de alunos e instrutores estava encaminhando-se para alguma vivencia que estaria prestes a acontecer. Ao passar pelo estacionamento, vimos um passarinho aproximar-se do espelho retrovisor de um carro. Ao avistar seu próprio reflexo, achou que se tratava de outro pássaro a querer invadir seu território e a partir de então, iniciou uma guerra contra o espelho. Por vezes se chocava contra ele e em outras, bicava-o insistentemente. Obviamente se machucou e tão logo percebeu que não era outro pássaro, deu meia volta no ar como se fosse embora, mas, em seguida, novamente se viu no espelho, repetindo todo o processo. Mestre DeRose que acompanhou aquela pitoresca cena que não durou mais que alguns segundos, disse aos que estavam presentes: “Assim somos nós, presos dentro de nossos paradigmas”, bem, dizem por aí que passarinho possui memória de três segundos…

No entanto, a dualidade que existe em praticamente tudo, também está presente na memória como ferramenta de evolução. Ela é fator gerador de outro obstáculo apontado por Patáñjali no capítulo II (trilha da prática), sútra III: o excessivo apego à vida. Em minha opinião, este apego não esconde somente o temor da morte, mas também o receio de perder as sensações de todas as experiências vividas dentro da viagem a que chamamos de vida. Por meio da memória, nos apegamos àquilo que já não existe mais, mas tão somente nas vagas brumas nostálgicas de nossas carcomidas lembranças. Será que é por isso que hoje temos o sucesso das linhas retrôs em variados tipos de publicidade, relançamentos de filmes, peças de teatro que um dia foram boas, o assustador popularismo do botox e tudo o mais que nos fará tentar vivenciar algo que as primaveras levaram?

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Já tentou reatar um namoro anos depois, quando já não mais sentia grande coisa pelo outro, mas porque em algum dia do já amarelado tempo de sua memória, aquilo foi muito bom e lhe proporcionou prazer pelos momentos felizes vividos juntos? Pois é como reconstruir um vaso quebrado, nunca mais será o mesmo! Creio que seja por isso que quando envelhecemos vamos perdendo a memória, talvez seja uma forma da natureza nos poupar o sofrimento da lembrança; uma forma de nos desapegarmos daquilo que um dia fomos e nunca mais seremos. A memória nos traga para túneis tingidos de sépia que nos conduzem a passeios no trem das saudades, por vezes felizes, outros nem tanto, mas sempre saudades.

“Hoje joguei tanta coisa fora, cartas e fotografias, gente que foi embora…”, foi com este refrão dos velhos Paralamas na cabeça que recentemente fiz minha mudança de residência em Sampa. Ah, nossa castigada memória emocional ainda nos faz palpitar o coração. Quantas coisas temos que deixar para trás a descansar em algum acinzentado banco de praça, até serem desintegradas lentamente pelas ventanias das novas gerações. Caetano diria que saudades até que é bom, melhor que caminhar vazio… e eu digo sempre, que devemos aprender com o passado, sem se apegar a ele, aplicar o que aprendemos nos fundos do presente e prepararmo-nos para a colheita de um futuro próspero.

Mas se a memória causa este sofrimento, o que fazer? Ser um desmemoriado? Mais uma vez, temos que aprender a canalizar a situação em nosso favor, ou seja, emancipação da escravidão mental. Recentemente, estava com um grande amigo que perdera a mãe e a irmã de Câncer em um ridículo intervalo de quatro anos, em um café de calçada qualquer da cidade de São Paulo, e ele, ainda meio atônito, balbuciou: viver é um ato de heroísmo! Achei aquilo muito bonito e completei: cara, já se deu conta de que nossas vidas se resumem agora a este exato e absoluto instante? Tudo o que fomos, vivenciamos, sentimos, experimentamos, conhecemos, não fazem a mínima importância nesta fração congelada do tempo. Nossas vidas são exatamente isso que neste momento enxergamos e sentimos, eu e você; nunca houve o amanhã ou o ontem. Tudo o que chamamos de passado e projeções de futuro se assemelham a desconexos flashs de um alternativo filme B, meio sem pé nem cabeça, encontrados na mais profunda penumbra do sótão de uma casa com sete janelas. Ele consentiu com um leve movimento de cabeça.

Por intermédio da memória, ficamos presos em nossos próprios paradigmas e atrelados a um passado que por vezes temos a esquisita impressão que não aconteceu, como dizia Cazuza em sua sutil e letal poesia: parece que, aquele amor que tive e senti um dia, quando o reencontro, nunca existiu.

Mas nem tudo são espinhos, eis um dos lados bons da memória: aqueles que ignoram a ética e destroem a confiança neles depositada pelo anseio do tilintar dos trinta dinheiros, haverão de se lembrar de que se é falha a lei dos homens, não o é a dos juízes do karma absoluto, afinal, não somos só nós que temos memória.

Por Fábio Euksuzian

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Fábio Euksuzian

Autor dos livros A Ancestral Arte da Poesia, Yôga em Dupla e o CD Relaxe e Desperte!

www.fabioeuk.org


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