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Japão, a ilha das crianças perdidas

Não raro, eles oferecem um conforto que une a sofisticação à discrição, com as espaçosas bibliotecas de mangás e de DVDs, seus compartimentos dotados de…

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Não raro, eles oferecem um conforto que une a sofisticação à discrição, com as espaçosas bibliotecas de mangás e de DVDs, seus compartimentos dotados de uma poltrona confortável, separados por finas divisórias a meia-altura e seus distribuidores de bebidas, sanduíches ou xícaras de aletrias instantâneas. Os cibercafés que funcionam 24 horas por dia são os novos refúgios dos jovens japoneses.

Na sua maioria, eles estão aí para surfar na Web, enquanto os outros buscam ocupar o seu tempo livre, assistir à televisão ou ainda descansar em meio à penumbra de um lugar confortável, longe da barulheira das ruas dos bairros agitados. Alguns fizeram desses cafés a sua toca. Eles são os “refugiados da Internet”: jovens de 20 a 30 anos que vivem de bicos, passam de um ao outro e não ganham o suficiente para conseguir arcar com o preço de um alojamento ou de um quarto de hotel. Nos cibercafés, eles podem passar seis horas pelo preço de 1.500 ienes (cerca de R$ 24), ou até menos nos bairros periféricos. A maioria dos grandes estabelecimentos dispõe de uma centena de compartimentos.

Já passou da meia-noite. Na frente da máquina de bebidas quentes, ele aguarda até que o seu copo de plástico fique cheio. Ele aparenta ter cerca de trinta anos, traja calça jeans e camiseta azul, e seus cabelos estão despenteados e revoltos. Ele é “cool”, assim como milhares dos seus conterrâneos que nós cruzamos anteriormente nas ruas do bairro vanguardeiro de Shibuya em Tóquio. “Vocês estão mesmo à procura de um novo pobre?”, indaga, com um sorriso amargo. “Bingo! Vocês o encontraram. Trinta anos, cerca de vinte pequenos trampos sem futuro no currículo. Já faz três meses, eu vivo aqui com uma pequena mochila e roupas íntimas descartáveis. Eu sou um ‘one call worker’: inscrito na central de uma agência de empregos temporários que me chama no meu celular quando aparece um trampo. Costumo ser pago cerca de 1.000 ienes por hora [cerca de R$ 16]. Gasto 1.500 ienes por noite. Para comer, vou nos McDonalds. Humilhante, não é? O governo vem falando numa ‘segunda chance’ para os perdedores iguais a mim”, prossegue o jovem rapaz. Mas ele está farto de tudo isso: “ninguém está mendigando uma chance, um golpe de sorte. O que nós queremos é uma vida decente, e só isso”. Seu nome? “Eu não sou ninguém nesta sociedade”. No copo de plástico, o café está esfriando. Ele o toma e, então, após despedir-se com um simples “inté!”, ele caminha rumo ao seu compartimento.

Os cibercafés oferecem um resumo da sociedade japonesa contemporânea: próspera, lisa e eficiente na superfície, mas percorrida por ondas subterrâneas que deixam transparecer um mal-estar e muitas coisas que não funcionam. Nos cibercafés mais modernos, aqueles dos bairros agitados, os freqüentadores contam com um atendimento digno de um hotel, que inclui ambientes sofisticados e serviços múltiplos. Misturados no meio dos clientes – porque nada na sua aparência os diferencia verdadeiramente – escondem-se os jovens sem rumo.

Depois de uma década de recessão, a máquina produtiva nipônica voltou a funcionar, mas ela deixa desamparados um grande número de jovens. Eles são os “freeters” (palavra composta com a inglesa free e a alemã arbeiter, que designa aqui aqueles que vivem de bicos). Após terem crescido no Japão da “bolha financeira” do final dos anos 1980, eles entraram no mercado do trabalho no final do “período glaciário” da recessão, quando as empresas preocupadas em reduzir os seus custos cortaram fundo no emprego permanente para privilegiar o trabalho temporário. Eles integram aquilo que o diário “Asahi” batizou de “a geração perdida”.

O governo estimou em 1,8 milhão o número dos “freeters”, moças e rapazes. Enquanto no início da década foi possível enxergar neles a expressão dos valores individualistas de uma geração mais orientada para satisfações pessoais do que os seus pais, geralmente dedicados a uma empresa, muitos descobriram que a sua situação é menos sinônimo de liberdade do que de precariedade.

Aos que foram deixados por conta no momento do reaquecimento, freeters e jovens depauperados oriundos da área rural que não têm meio algum para pagar um aluguel e menos ainda os três meses de caução adiantados para obter um alojamento, acrescentam-se aqueles que sociólogos ingleses batizaram de “neet” (Not in Education, Employment or Training). Eles não são nem estudantes, nem em processo de formação: eles estão sem rumo. Mal entraram no jogo, eles optaram por desistir. Em sua maioria, eles são adolescentes introvertidos que se recusavam a freqüentar a escola (um fenômeno preocupante que vem ocorrendo no arquipélago já faz uma década). Adultos, eles permanecem fechados dentro de si mesmos. Haveria mais de 800.000 deles.

Os neet são um sintoma do mal-estar de uma sociedade que se tornou ferozmente competitiva, que condena a sua incapacidade de adaptação, atribuindo-a à sua propensão a não fazer nada. Uma mensagem que eles recebem como uma negação do seu direito de existir. Os neet integram uma boa parte dos jovens que se suicidam. Assim como eles, muitos são os freeters que têm o sentimento de estarem presos numa armadilha.

Os cerca de dois mil cibercafés que existem no Japão são mais baratos do que uma sauna aberta a noite inteira, ou ainda do que os “hotéis cápsulas”, onde as camas ficam sobrepostas assim como os leitos de um trem. E as bebidas são gratuitas. À noite, os maiores ficam lotados.

Além da fauna dos clientes habituais (10% segundo os empregados), que os freqüentam durante algumas semanas, ou mesmo alguns meses, também podem ser encontrados alguns assalariados que perderam o último trem. É possível flagrá-los roncando, com os pés sobre a mesinha do computador, nas poltronas reclináveis dos pequenos compartimentos de 2 metros quadrados, onde é preciso tirar os sapatos antes de entrar. Aqui e lá, nos compartimentos para dois, casais aproveitam a penumbra cúmplice para se acariciar discretamente. Alguns são colegiais que contaram para os seus pais que eles dormiriam na casa de um colega ou de uma amiga. Na frente da entrada de outros compartimentos aparecem alguns calçados de saltos altos: são garotas da noite (recepcionistas de bar e outras) que ficam aguardando os primeiros metrôs. Na primeira hora do dia, todo esse mundinho desperta e se dirige para os chuveiros do estabelecimento. Alguns deles dispõem até mesmo de uma sala de esporte.

Os refugiados da Internet constituem uma das facetas da nova pobreza nipônica, filha de uma desigualdade crescente entre aqueles que têm um trabalho fixo e os outros. Uma disparidade que, daqui para frente, passa por uma clivagem entre gerações.

Philippe Pons, Correspondente Le Monde em Tóquio – Tradução: Jean-Yves de Neufville

Fonte: UOL Mídia Internacional

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