Aos dezoito anos de idade muita coisa se passava fora da sala de aula da faculdade. Muito mais coisas se passavam aqui dentro. Hormônios em ebulição? Não sei. Hoje, pode ser. Naquele tempo nem sabia da sua existência. Tudo acontecia ao mesmo tempo e de tudo queria fazer parte, por isso era tão disperso. Tinha um grande colega naquela turma da administração, o Roberto Matias. Com ele nada disso ocorria. Mais velho, aos vinte e cinco anos ele era casado e pai.
Meu motivo para estar na faculdade é que acreditava que se parasse de estudar por uma questão qualquer, provavelmente não voltaria mais a uma sala de aula. Sendo assim, eu tinha que. Roberto Matias era de um tipo de tinha que bem diferente. Família, aluguel e todas as contas de uma casa pesavam sobre ele. Isso, conforme ele fazia rarear seus cabelos, dando aparência de alguém mais velho do que realmente era. Para ele o curso era uma necessidade por um futuro melhor, que pedia urgentemente atitude.
Apesar de diferentes, em nossos propósitos havia também uma troca que compensava as faltas de ambos os lados: eu contava aventuras que ele não poderia mais viver, uma vida fútil e sem regras; ele me mostrava superação e compromisso, uma vida a construir um relacionamento e patrimônio.
Chequei atrasado para a aula e o professor havia pedido um trabalho simples. Consistia em ler e recortar uma matéria de jornal, alguns seriam sorteados para comentar e dar sua opinião sobre o assunto para a sala. Como era de se esperar, eu não li, mas Roberto Matias leu e trouxe.
– Roberto que assunto escolheu?
– Nem vem, só tenho um recorte – sacou ele me mostrando um pedaço mínimo de jornal de sete centímetros quadrados.
– Pô Roberto, você pega um jornal inteiro e nem trás uma página? Trás uma porcariazinha destas? Deixa dar uma olhada no que é.
– Nem a pau! Só trouxe isso e se o professor me chamar?
– Cara… Com cento e vinte alunos ele iria chamar nós dois? Acorda Beto. Nem nossos nomes e nem nossos números estão em seqüência.
Foto: Smosh
Convencido, ele me deixou ver o pequeno recorte. Trazia uma matéria que falava sobre uma nova forma de adubo orgânico. Como funcionava? Os fazendeiros soltavam porcos num grande cercado onde iria ser feita a plantação. A terra já tinha sido revolvida para o plantio da semente. Pois bem, os porcos e outros bichos alimentados eram soltos neste espaço e deixariam ali todos seus detritos produzidos. Pronto! Era isso! Adubo natural. No verso era uma propaganda qualquer, nem para ter outra matéria…
– Matias, o que é isso? Que coisa mais idiota! – Que decepção. O Matias, justamente ele, trazendo uma porcaria daquelas?
– Idiota, mas é minha – raivoso arrancou da minha mão o pequeno pedaço de papel.
– Boa noite senhores. Trouxeram as matérias? Podem vir aqui… Senhor Vinícius Moura e… – O professor se apressou a dar andamento à aula.
Agora ferrou. Cento e vinte alunos e quem ele chama? Quem? Meu coração disparou com a certeza de que quando começa mal, acaba pior. Ir lá para frente ou dizer que o meu cachorro havia comido minha matéria? Justamente naquela aula em que eu precisava de pelo menos dois pontos para não carregar uma DP. Eu precisava mesmo daqueles pontos.
– Roberto me dá isso aí – Tomei dele o papelzinho e fui lá para frente.
– Senhor Roberto Matias. O senhor trouxe? Certo. Pode vir.
Ah! Não! Simulo um desmaio? Digo que minha pressão baixou? Só podia ser brincadeira… Agora ficava evidente para as cento e dezoito pessoas lá embaixo minha cara de desespero.
Devolvi a matéria que o Roberto havia trazido e pedi para que ele falasse primeiro. Ele comentou sua “importante” notícia, o professor fez uma ou duas perguntas, que era o máximo de dúvida que cabia. Deu alguns pontos e um sacode por ele ter escolhido matéria tão irrelevante.
– E você? O que trouxe? – me apontou estranhando por eu não ter minha matéria nas mãos.
Era irrelevante a matéria que o Roberto tinha lido? E eu? De que assunto falaria? Porque não falei com qualquer outra pessoa? Como ele pode ter me colocado numa situação desta? A culpa tinha que ser de alguém, do cachorro ou do Matias? Era minha, inteiramente minha.
– Professor, – disse levantando a cabeça e me enchendo de convicção – aconteceu uma incrível coincidência… Beto, este foi o jornal distribuído no metrô esta manhã não é mesmo?
Ele discordou. “Estadão” disse. Roberto infeliz, nem para concordar. Não ajudava em nada…
Foto: I grandi classici della natura
– O que importa professor e que este mesmo assunto eu retirei de um jornal que recebi no metrô. Escolhi a mesma matéria… – Eu devia ter desmaiado, eu devia ter desmaiado…
– Quer dizer que os porcos saem cagando e mijando? – o professor atônito e decepcionado apelou para a ironia.
Que palavreado era aquele? A classe inteira ria. E eu queria me esconder sob meus sapatos. Aquele era um professor sério, bem sério. Onde ele tinha aprendido a falar daquele jeito?
Sem tomar conhecimento do sarcasmo continuei: – Esta é a ideia, professor. Eles alimentam os bichos e soltam pelo campo… Eles saem produzindo adubo.
– Como recolhem o adubo? Vão seguindo os animais com um baldinho?
– Não requerem manutenção, isso é o melhor da inovação…
A coisa foi daí para pior. Talvez pela minha cara de pau o professor ainda quis me dar um ponto por participação, não aceitei. Pelo menos queria manter alguma dignidade. Desci do tablado com a certeza de que aquele era o único dia que eu realmente devia ter faltado. Foi o papel mais vergonhoso que fiz naqueles cinco anos. No fim, o desastre teve um grande saldo positivo. A vergonha transformou aquele meu irresponsável “ter que” no desafio que veio a ser minha verdadeira escolha.
Foto de abertura: WRKF
Por Vinicius Moura