Um outro mundo por Vinícius Moura
Ana tinha manias que para as outras meninas eram estranhas, por isso mantinham distância. Aninha não era nada popular, tímida demais, insistia mês a mês…
Ana tinha manias que para as outras meninas eram estranhas, por isso mantinham distância. Aninha não era nada popular, tímida demais, insistia mês a mês na cor azul do aparelho que usava nos dentes, completando a esquisitice.
Nem por isso se sentia só, se lhe faltavam amigos ela criava em sua imaginação outras companhias. Cada pedra que encontrava não era apenas uma pedra. Era uma capa que protegia um mundo misterioso e as pessoas passavam indiferentes sem nunca perceberem que havia um universo inteiro ali. Para revelá-lo bastava levantar a rocha, a umidade e a sombra eram o abrigo perfeito para os habitantes do mundo dos insetos.
Para as outras meninas, aquilo tudo não passava de coisinhas asquerosas. Só isso, coisinhas bem feias e bem asquerosas. Mas Ana se vestia num avatar para fazer parte daquele planetinha, cada ser pequenino tinha uma história deliciosa que ela adorava ouvir. Escorpiões contavam que sua natureza traidora não era justa, era somente um mal entendido numa reação natural ao susto e ao medo. Minhocas se diziam altruístas, cidadãs felizes por descompactar a terra e de serem úteis às lavouras. As centopeias vaidosas se gabavam do seu sincronismo e de sua habilidade no sapateado. Uma pedra não era uma pedra, um inseto não era só um inseto.
Aninha era esperta demais, muito cedo já estava lendo. Foi nesta época que encarou um fato que a deixou apreensiva: teve medo de revirar as letras. As palavras eram espécies desconhecidas para ela. Não eram como seus amiguinhos e não iam se comportar como os tatus bolas, divertidos e brincalhões. Com o passar do tempo, ela teria que aprender outra forma para interagir com aquelas formas flexíveis, que ao juntar uma palavra com outra, mudava tudo o que se queria dizer. Teve medo de se decepcionar com o mundo novo, o “A”, o “Efe”, o “Jota” quantas combinações seriam possíveis? Palavras podiam ser escritas de trás para frente sem perder o sentido. Seu nome era assim.
Aos 15 anos conheceu os radicais, as concordâncias, os tempos verbais, tudo isso era muito assustador. Os antigos amiguinhos de Ana foram pouco a pouco sendo substituídos pelas palavras. Ela foi ficando tentada a descobrir que mundo haveria por baixo de cada letra. O que haveria por trás de cada frase? As reticências, o que queriam ter dito e não disseram? Os sujeitos ocultos e indeterminados do que se escondem? Eram as suas dúvidas que agora lhe sugeriam histórias.
Com o tempo o universo das palavras foi se tornando amigável. E Ana passou a levantar cada palavra do papel, procurando sob elas o que mais poderiam dizer. A palavra literal era modificada pela interpretação, sendo assim, sob as letras era possível encontrar muito mais do que estava escrito, quanta surpresa. A interpretação transformava o que o autor disse no que o leitor gostaria de ler. Cada um, limitando ou ampliando seu conhecimento, enxergava somente o reflexo do seu pensamento. Aninha estava fascinada com a possibilidade de a mesma história ser, para cada pessoa, um conto completamente diferente.
Ela cresceu um pouco mais. Mas seu mundo adulto não apagou a lembrança de que debaixo de uma pedra havia um universo escondido. O que deu margem para não se decepcionar, caso não fosse nada disso quando lessem. Por fim, se tranquilizou, afinal, para muitos, por mais que explicasse nada mudaria, o mundo é só isso mesmo. Uma pedra.
Por Vinícius Moura
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