Quem sou eu. Este era o tema, e também um exercício da matéria de redação: falar de mim em primeira pessoa, sem personagens ou histórias mirabolantes. Num primeiro momento me pareceu simples. Fácil, tiro de letra! Num segundo depois o tema se tornou implacável. O lápis batia na folha branca, esboçava algo, um risco, um cubo, uma borboleta, uma letra qualquer e nada do assunto prosperar! Quem sou eu?
Como me descreveria? Pedi uma opinião e ouvi:
– Você é alto, desorganizado, divertido, corajoso, ranzinza, compromissado…
É isso que eu sou? Eu deveria saber sobre mim mais do que qualquer outra pessoa, mas diante do exercício prático proposto parecia não saber. Era raso, curto e sem vocabulário. Outra folha, limpinha, branca e comecei: Brasileiro, casado, administrador, morador da cidade de… Meu Deus! Quanta criatividade! Está aí, descobri que também sou irônico!
Minha descoberta acerca de mim mesmo também me designa com adjetivos temporários dos quais sou chamado de “assinante” quando estou na agência telefônica, “passageiro” no aeroporto, “contribuinte” para a prefeitura, “cliente” numa loja, “devedor” no SPC… De qualquer forma isso, apesar de curioso, não me descreve.
Inteligente e teimoso. Líder, mas um tanto irresponsável. De atitudes pró-ativas e outro tanto egoísta. Extrovertido e tímido. Ainda que juntasse dezenas, quem sabe até centenas de adjetivos, a sensação é de que ainda estaria faltando algo. Não é exatamente assim? Você pode se descrever dizendo a cor dos olhos, cabelos, pele, gênero, signo, idade e ao ler vai se perguntar: é isso que sou? Vai parecer muito pouco para sua própria tradução. Posso descrever dezenas de pontos tanto positivos como negativos e vou chegar à mesma conclusão: ainda falta algo.
Foto: lockgamer
Outra forma de qualquer um se desvendar é observar como se veste, ou sua postura. Caso ainda não tenha percebido, isso diz muito, às vezes muito mais do que gostaria que dissesse, basta prestar atenção. Para as mulheres os decotes, saias justas, um botão entreaberto, é possível que a mensagem diga: estou na ativa, busco alguém. Com os homens não é nada diferente, camisetas apertadas salientando o bíceps e peitoral querem nos dizer: olhe como posso te proteger, me imagine sem ela! Vestindo um costume elegante: sou alguém! Sou respeitável! Calças agarradas: se der mole, eu pego!
Postura do corpo, cabelos, tudo quer dizer algo. O corpo fala. A doença fala. A casa, os móveis, tudo… Credo em cruz! Será que surtei num pesadelo com centenas de bocas, dentes e línguas desesperadas criadas por mim com o propósito de falar a mim mesmo coisas a meu respeito que não consigo ouvir?
Chegou um ponto em que minha primeira crônica pareceu mais um teste de vestibular com dificuldade de vinte candidatos para uma vaga. Veja que sei absolutamente que não é possível deixar de falar de mim mesmo ainda que esteja pintando um quadro abstrato, ali também tem uma mensagem: a cor pode descrever meu estado de espírito ou o termômetro do meu desejo. Suas formas descrevem minha agressividade ou suavidade. Um texto com uma história ainda que de ficção vai ser exatamente igual, falarei por metáforas de mim como se fosse um ser alado, ou um personagem do futuro. Ainda assim, continuo falando de tudo que se passa aqui dentro.
Que tema desafiador! A princípio deveria ser fácil falar de algo que eu deveria saber de cor e salteado, afinal, desde que nasci, estudo a mim mesmo, por assim dizer. Esta pergunta mostra o quão pouco tenho estudado, ou quão pouco tenho me aplicado em me descobrir. É óbvio que até aqui tenho me esquivado com tudo que posso usar de recursos por um único motivo. A vergonha.
Não importa que de um lado da folha em branco eu consiga descrever centenas de adjetivos que considero positivos e, do outro lado, por falta modéstia, descreva apenas alguns poucos desvios de comportamento. O conflito para uma história sempre falará do conflito de seu autor. Serão estes, poucos gatos pingados anotados no verso da folha, que desesperadamente e a todo custo tento esconder. Eles revelam a vergonha.
Os conflitos que não supero, sou impotente para eles, sou pequeno. A quem lê, quem ouve, quem o vê é insignificante, fácil.
Coisa boba, para quê tanta confusão? É o que podem dizer.
Enfim o tema proposto é fácil se não fosse a estrutura de qualquer história que é passo a passo: Primeiramente – A apresentação de uma situação comum. Depois – Um conflito para apimentar a história. Por fim – Um desfecho que vai dar um destino ou apresentar uma resolução para a pendenga. Fácil não é?
Entretanto, se o conflito é justamente meu conflito, que continua sendo um conflito porque ainda não dei uma solução para o caso, as centenas de adjetivos positivos que poderiam me descrever não têm poder suficiente para me fazer enfrentar o ”bicho papão”.
O que sou então? Uma pergunta sem resposta? Evidentemente que não. Como a obra de uma vida, sou nada mais que uma legítima obra de arte. Assim como todo mundo. Sem falsa modéstia obra de arte, sim! No entanto, inacabada, como se pode perceber.
Por Vinícius Moura
Foto de abertura: Neemias da Silva