Hermes só queria esbravejar, tinha motivos. Ela, pelo contrário, queria convencê-lo de que estava nervoso desnecessariamente, que daquele modo, concluiria os fatos de forma totalmente equivocada.
– Equivocado, eu? Era só o que me faltava! – Hermes respondeu ainda descontrolado.
Ela, muito segura, se defendeu.
– Você me chamou de cínica, aposto que não sabe o que isso vem a ser.
– O que há para saber, além daquilo que você é?
Mesmo com sua rispidez, ela foi adiante:
– Saiba que o cinismo foi uma corrente filosófica que pregava o desprendimento dos bens materiais e do mundo mundano.
– Hã? Do que ela estava falando? Pensou. Mas, ela continuava com seu tom professoral:
– Conforme a filosofia, só a pessoa ligada à natureza poderia alcançar a felicidade.
– Do que a vadia estava falando? – Ele pensou antes de bater a porta, para não lhe bater na cara. Em seu julgamento, ela bem que merecia. Hermes há dias estava a ponto de explodir: como podia uma desculpa tão esfarrapada? E ela ainda tinha coragem de ser irônica. Este era o fim, fim que Hermes não aceitava. Filosofia, de onde ela tirou isso? Aquilo não tinha nada a ver com filosofia, a filha da mãe, na maior cara de pau queria era se safar.
A indignação de Hermes contaminou suas rotinas: reclamava da jornada de trabalho excessiva, sob a sacana explicação de que a empresa esperava ainda mais dos colaboradores, para atravessar o momento de crise. Discutia com o balconista o tamanho e a aparência muito clara do pão. Reclamava com o síndico sobre o barulho que fazia o cachorro do vizinho… Todos com desculpas esfarrapadas – falava sozinho, visivelmente desequilibrado – nem ela, nem ninguém assume que, por baixo de toda justificativa, há a imprudência, a desfaçatez, a cara de pau, isso sim é cinismo. E não era disso que se tratava? Claro que é. Cinismo puro.
Há dois mil e quinhentos anos, um discípulo de Sócrates já discutia que a vida virtuosa consistia na independência que se obtinha através do domínio dos desejos e necessidades. Sendo assim, a felicidade dependia da renúncia aos desejos criados pela civilização e também de abandonar as convenções sociais. Faz algum sentido?
Aperreado como estava, conseguiu ver, sim, todo o sentido. Agora tudo fazia sentido. O que ela havia feito era justamente se apegar a desejos, descaradamente. Quanto às convenções sociais, isso ela havia rompido. Mas que felicidade é esta? Desejo menos convenção social é a equação perfeita para o resultado ser a safadeza. Só isso. Safadeza, nada mais. E não seria nenhum filósofo grego de nome Antístenes ou Diógenes que o convenceria do contrário.
– Põe mais uma – pedia a quinta dose ao barman.
– Com todo respeito senhor, cínico é você.
– Como assim? Hermes empurrou a cadeira para trás, violentamente, espantando o pileque. Sem demonstrar espanto, o barman se explicou:
– Depois de tanta confusão, o que o senhor quer mesmo é que esta mulher não te abandone. Mas, Hermes também se explicou:
– Onde já se viu? Fazer de uma leitura erótica, um tal de “50 Tons de Cinza”, pretexto para a sacanagem com o primeiro desconhecido. Inabalável, o barman retomou:
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– Se seu único intuito não fosse conseguir uma razão justificada para aliviar a culpa de estar querendo perdoar o imperdoável e assim continuar com ela, não estaria levando em consideração tanta tolice.
– Você é muito abusado! Coloca mais uma.
– Mas, senhor… Se ela lhe é tão importante… – o barman se interrompeu, quantas vezes já não tinha presenciado a mesma cena? Esperava que o freguês estivesse interessado em ouvir o resto. E estava. Portanto, continuou: – Pelos cínicos de 2500 anos atrás, a felicidade é alcançada se desprendendo das convenções sociais, vaidades, orgulho e até mesmo do acúmulo de riquezas, não é isso? Por que duvidar que este não seja mesmo o caminho da felicidade?
Hermes apertou sua mão, deixou uma boa nota sob o copo e saiu sem dizer para onde ia. Nem precisava. Não havia surpresa, o barman já havia assistido a este mesmo desfecho centenas de vezes.
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Foto de abertura: Meu mundo, meu caminho
Por Vinícius Moura