Crônica escrita partir de uma manchete do Jornal Notícias Populares: “Garoto é expulso da escola por causa do chulé”
Ela não conseguiu resistir quando viu o chinelo Trocs, pechincha de feira, igualzinho àquele bacana que a patroa usava, com jacarezinho pintado e tudo mais. Seu filho merecia, mesmo com a água cortada há dois meses e a luz ameaçada de corte. Não devia, mas a indignação a cegou. Embrulhe, ordenou. Aquela era a última parcela do seguro-desemprego e o início do ano letivo, Fred seu filho, estava matriculado e merecia o luxo de estar bem apresentado, com o chinelo da moda, ou quase.
A popularidade era importante, Norma relembrava seu tempo na escola, de quanto havia sido humilhada, pela sua aparência, sua cor, seu desempenho e principalmente porque não tinha nada para calçar. Fred, se deus quiser, não haverá de passar por isso, ele será um vencedor. Pai não tinha, nem na certidão. Mas, a mãe valia pelos dois, sempre pronta para defendê-lo, custasse o que custasse, nada haveria de lhe faltar.
A primeira semana na escola, correu tudo bem. Fred parecia feliz, tinha merenda, tinha até leite amarelinho com Nescau. Norma, então? Estava realizada. Emprego estava difícil, mas seu filho querido estava feliz e era só isso que importava. Na segunda semana chegou um recado, ela não lia, sem saber lidar com os gracejos e sem ninguém para defendê-la abandonou a escola antes de aprender ler, isso não ia acontecer com seu filho. Mas, por enquanto ele também não lia. Uma vizinha de barraco a informou: querem que você vá lá conversar com o professor. Ela brigou com o filho, pediu mais dedicação e que se comportasse em aula, mas ir lá como pedia o recado não foi. Você tem que aprender que tudo na vida tem consequências. Em seu entendimento a função dela era orientar. Isso ela tinha feito, portanto, agora era com ele, afinal, a vida não é fácil para ninguém e quanto antes aprender isso, melhor.
Depois de duas semanas, um novo recado apareceu, mas não estava anotado no caderno, este era uma folha avulsa, uma carta, mais longa. Desta vez nem recorreu a vizinha, chamou Fred e lhe deu uma surra. Já te avisei garoto, eu tenho muito que fazer e não aceito que faça bagunça ou que não se comporte bem. Se estiver metido com gente da pesada vai se ver comigo. Eu não dou duro prá sustentar vagabundo… Fred, sem chances de defesa só suportou. Lá veio varada nas pernas, cintada no lombo, e grito por cima da sova. A cada tentativa de explicação tome mais sopapo. Calou e se abaixou na pinguela para lavar o Trocs no esgoto que passava embaixo. Depois do quarto recado sem resposta, Fred foi impedido de entrar na escola. Porque tudo isso?
Norma bufou. Esticou-lhes as orelhas e foi lá tirar satisfação. E eles não foram sozinhos, ligou para a produção de um jornal sensacionalista e prometeu grande barraco. A recepção na escola contava com a diretora, o supervisor, o zelador, a professora… O zumzumzum chamou a atenção dos alunos que correram para ver o que acontecia. Para conter a mãe enfurecida sacaram um abaixo-assinado, mesmo sem saber ler o tom da voz deixava claro que não era coisa boa. A garotada em coro agitava: Fredis, Fredis, Fedis. A palavra improvisada “Fedis” veio bem a calhar, foi a salvação da professora que não imaginava como explicar em tom delicado a brutalidade da ação ao expulsar o garoto da escola por motivo tão incomum. Os alunos, dona Norma, fizeram este abaixo assinado, porque não conseguem conviver na mesma sala com o chulé de seu filho, como a senhora não respondeu aos nossos apelos… E esta foi a explicação da diretora.
Era esta a questão, o Trocs feito de borracha e todo fechado, fedia. O chulé empesteava. Mas, como ia dizer isso prá Norma que comprou com tanto esforço, e o presenteou com tanto carinho? Ai dele se não usasse… E será que o problema era só chulé? Há quanto tempo não lavava os cabelos? Na água de bacia só molhava os sovacos…
Norma aquietou-se. Aquela seria a sina de sua família? Seu querido filho, assim como ela, sofria as mesmas humilhações. E o futuro? Que futuro teria sem escola?
No dia seguinte a vizinha com um jornal na mão, mostra a foto de Fred na primeira página. O que diziam? Isso não importava, nem pediu para que lesse. Num puxão tirou o jornal de sua mão e, orgulhosa foi se exibir para toda comunidade, era seu filho amado e na primeira página, quem diria? Popular ele já era, agora só faltava planejar o futuro, mero detalhe.
Por Vinícius Moura
Imagem de abertura via Clínica Len