Assombrações
Lembro-me de quando era pequeno e meu pai contava histórias de assombração. Pessoas do interior contabilizam muitas histórias e as de assombração estão no topo…
Lembro-me de quando era pequeno e meu pai contava histórias de assombração. Pessoas do interior contabilizam muitas histórias e as de assombração estão no topo do ranking. São loiras ensanguentadas que nunca morrem. Seres horríveis todos deformados que nada mais fazem da vida a não ser assustar viajantes inocentes. E o mais terrível de todos: O velho do saco. Terrível porque ele não era apenas um “velho que tinha um saco”, nada disso. A maldita criatura não tinha altura definida, nem uma descrição que deixava claro a cor da pele ou se era gordo ou magro. Não se sabia se tinha barba ou cabelos ficava tudo por conta da imaginação, inclusive o saco.
Por conta disso, minha imaginação tratava de fazer o tal velho a pior das aparições.
Foto: Informação digital em pauta
Eu, como filho, cresci sob a ameaça de que se não fizer direito uma aberração qualquer viria me pegar. Esta era a principal função do velho do saco, carregar os desobedientes e malcriados. Mas, depois de crescido, tanto os bonzinhos Papai Noel e o coelho da páscoa, como os mauzinhos, mula-sem-cabeça e as legiões de assombrações, deixam de existir, é a tal maturidade. Não que tenha me esquecido deles, entretanto, se tornaram coisas que um dia, por pura inocência acreditei e agora estão devidamente guardados na mitologia da família.
Está bem, confesso que não devem estar tão bem guardados assim, caso contrário não estaria relatando a lembrança deles. Francamente, o que acredito ter acontecido é que aos poucos devem ter aberto a gaveta na qual estavam trancafiados como prisioneiros da infância e foram saindo de fininho, um a um. Comecei a andar pelas ruas e pisar apenas na parte escura dos desenhos nas calçadas. Só podia caminhar pisando na parte escura. Não saberia nominar o bicho que me assustava, mas devia ser destes do tipo que anda com machados e cortam cabeças sem piedade. Depois, além de não poder pisar na cor escura não poderia mais pisar nas rachaduras ou imperfeições, apenas nas partes lisas, nos blocos que pareciam sólidas, se não outra horrenda criatura me pegaria.
As assombrações saíram do chão e começam a subir as paredes me fazendo contar as persianas, as listas estampadas nas camisetas, os livros da estante, as placas da forração do teto, o número de carros com placa final oito, os azulejos das cozinhas e contar e contar e contar… Comecei a mensurar uma tarefa em horas, as horas em minutos, depois em segundos… E tudo ia virando uma contagem regressiva que levava a outra contagem que contava novamente reafirmando o resultado e… Bom… É isso! Sem fim.
Pedro, amigo do trabalho me diz:
-Você está muito estranho! Está com mania de doença.
-Não estou não. Por que diz isso?
-Olhe para você, sem motivo aparente, tem tomado um punhado de comprimidos todos os dias… Para que isso? Que coisa é esta?
-Isso não é mania de doença, pensa que sou louco? Pelo contrário é prevenção.
-Isso é mania. – Ele determina e sai me deixando com o ritual dos comprimidos e o copo de água na mão.
Claro que eu não acrescento a informação de que os comprimidos têm a função de afastar a influência dos bichos que querem me pegar, caso eu faça uma contagem errada ou pise onde não me é autorizado.
Mas, olhe que coisa, veja se não tenho razão. Dia destes minha esposa ia viajar e o vôo estava marcado num horário no meio da madrugada. Ela, para não me acordar, deixou tudo preparado, mala, frasqueira, nécessaires… Naquela madrugada eu ainda estava profundamente adormecido e me esqueci por completo da sua viajem. De repente fui sentindo uma leve pressão sobre meus pés.
Pronto! Bastou para as antigas e mais assustadoras lembranças me invadissem a alma. As assombrações, os mortos-vivos, o bicho-papão e mulas-sem-cabeça voltaram vivos à minha memória como me era contado.
Imagem: Passadiço Virtual
Caso você não seja uma pessoa que ouviu histórias de terror na infância, cabe-me informar que as almas penadas te pegam pelos pés. É isso mesmo, elas não vêm e te enfrentam com um empurrão no peito, como um sujeito invocado, são sorrateiras e sempre pegam pelo pé.
E eu debaixo das cobertas sinto uma pressão sobre meus pés e começo a fazer mil orações, Nossa Senhora, Jesus Cristinho, São Longuinho, Iemanjá, Maomé… São elas, as assombrações, os bichos das profundezas que ficaram magoados por eu não ter levados a sério e agora voltaram para se vingar. Só podia ser isso.
Começo a suar e tremer apavorado. Abro um olho e tento perceber alguma movimentação na escuridão. E nada! Nada percebo. O quarto fechado fica na penumbra com apenas uma fresta na janela e a luz fraca vindo da rua. Para mim, tomado pelo medo sob a coberta, esta penumbra é o mesmo que a escuridão total. Escuridão da meia noite sem luar com lembranças antigas me invadindo. A pressão sobre meus pés aumenta. O que será? São elas! Só podem ser elas: as assombrações. Elevo o pensamento a Buda e prometo oferendas e flores à lembrança do meu finado avô. Ele que fique por lá, onde estiver.
O coração dispara. Mas, antes de perder o controle lembro-me que sou o homem da casa e que faz parte as minhas atribuições tomar uma atitude e defender o lar. Sendo assim, vou encarar o demônio ou morrer com dignidade. Fecho os olhos inspiro todo o ar que consigo e levantando num único pulo grito a todos pulmões: ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!
A “alma penada” também grita ainda mais apavorada, e ainda mais alto que eu: Ahhhhhhhh!
Era minha esposa. Que tirava das gavetas mais algumas peças de roupas e as dobrava na cama, sobre meus pés escondido sob a coberta, antes de colocá-las na mala e se movimentava pé ante pé para não me acordar!
Por Vinícius Moura
(Este conto foi baseado numa história real, narrado por um casal de amigos.)
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Imagem: Uniclasse
Foto de abertura: Indian Mistery
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