O mau cheiro emanava pela sala. Com certeza alguém tinha pisado. Azar: era você…
Alguém pisou.
Naquela sala tinham nove a onze pessoas. Toda semana nos reuníamos para procurar “pêlo em ovo”. Esta é a definição fácil quando vou explicar àqueles que querem uma resposta rápida e não fazem parte deste grupo. A proposta desta turminha é de estudar as motivações que nos fazem agir e ter os comportamentos que temos. Dizendo assim parece coisa de gente que não tem mais o que fazer – eu concordo! Por isso a expressão pêlo em ovo cai tão bem. Entretanto, para mim é extremamente gratificante descobrir que as coisas não são somente aquilo que se apresentam concretamente, ou literalmente, melhor dizendo.
O fato que se apresenta – qualquer fato, qualquer imagem, qualquer palavra – é apenas uma “ponta do iceberg”. Tudo, exatamente tudo que vemos passa por uma interpretação. A interpretação passa por uma espécie de filtro que é a sua crença. Esta crença, como qualquer outro fato, é também apenas uma ponta do iceberg. A parte principal, maior e mais importante, permanece escondida sob a linha d’água. Procurar pêlo em ovo é isso: cutucar o tal inconsciente e acordá-lo para a consciência.
Como sempre a reunião inicia sem nenhuma pauta. Sem tema, sem proposta alguma. O mediador entra na sala, ajeita os papeis na prancheta, olha sob os óculos os presentes e espera algum assunto vir à tona. É sempre assim. Sempre surpreendente, porque as coisas mais comuns e corriqueiras, como já disse, são apenas pontas de icebergs.
A sala é pequena, um cômodo de casa comum com sofás, uma estante com livros e cadeiras dispostas em um círculo. Além da porta tem também uma pequena janela sempre entreaberta soprando a brisa da noite. Neste dia a brisa soprava um cheiro incomum. Deve vir lá de fora, pensamos todos, já que ninguém disse nenhuma palavra. A brisa soprou novamente e começou uma inquietação. O cheiro incomum é de alguma caca que está mais perto do que gostaríamos. Sem dúvida, alguém que estava naquela sala tinha pisado.
– Deve ter sido você! – Eu digo me adiantando e passando a bola.
– Foi fulano – responde o acusado e conclui – estava na varanda até agora e não tinha cheiro nenhum. – ele, assim como eu, também chuta para frente.
– Eu não fui. – responde o sicrano – Vim de moto e parei aqui dentro da garagem. Deve ter sido…
Cada um passa a culpa adiante até começarmos a levantar os pés para encontrar quem foi o indiscutível “escolhido”. Até aqui tudo ótimo, este não é um grande problema e é até uma cena comum, acidentes acontecem e como neste caso, ninguém pisa na sujeira propositalmente.
Ops! Dei uma risadinha sem graça. Fui eu quem pisou! Tinha acusado desnecessariamente o outro. Não havia como disfarçar, a “coisa” estava grudada na sola do meu sapato. Limpei o solado e pronto!
Imagem: Rafinha e a 7ª arte
Volto para a sala e pergunto:
– Qual é o tema de hoje? – sempre tento acelerar a reunião para não ficar muito tempo na conversa mole.
– O tema já foi posto. – o mediador sentenciou, olhando direto para mim.
– É? Qual o tema? – Foi minha pergunta receosa. Veja bem, nesta altura do campeonato. Num grupo em que se procuram “Pêlos em ovos” eu já desconfiava de que o tema estava relacionado a mim e que acabei de ser convocado para ser o centro da discussão.
– Por que a necessidade eminente de apontar o outro como culpado? – alguém pergunta.
– Não me passava pela cabeça a ideia de ter sido eu. Tomo cuidado por onde ando. Por isso pensei ter sido outro alguém. – eu respondi cheio de dedos, já desconfiado que pudesse me afundar ainda mais.
– Mas como se pôde ver… – as reticências ficaram no ar esperando uma conclusão que viesse de mim mesmo.
– É. Bem… Fui eu mesmo. – Cabisbaixo assenti envergonhado. Não por ter pisado, isso, como já disse, acontece, mas não sei porque antevi que a coisa ia ficar feia.
A pergunta estava posta: Por que apontar ao outro primeiramente?
Pensei um pouco e disparei sem dúvida alguma: – Para não ter que arcar com o ônus da responsabilidade.
Qualquer outra resposta seria apenas uma justificativa. Implicar o outro sempre é uma fuga da própria responsabilidade.
Este grupo que vive de “colocar chifres em cabeça de cavalo”, não me culpa. Eu mesmo me culpo. Não é uma culpa de deixar constrangido, é uma culpa que se transforma em descoberta. Já que o assunto não fica restrito aos sapatos sujos que outra pessoa distraída deve ter pisado e que, lógico, nunca em primeira instância tenha sido eu. Apontar o outro como culpado é tão natural que não percebo mais minha própria responsabilidade.
Como o assunto é delicado, irei com calma. Pisar e apontar outra pessoa pelo feito, sem dar espaço para desconfiar da minha própria autoria é um processo automático de se desvincular do mau feito. Pode render piadas – aliás, rende! Mas o fato discutido é mais sério porque não é um caso ou assunto isolado, me esquivo de assumir muitos outros feitos por conta deste mesmo piloto automático, sempre ligado, sempre pronto para “passar a bola”. Foi outro. Será que você não faz igual?
Foto: Acessa SP
Algumas vezes entro em discussões sobre o quanto minha esposa gasta no cartão de crédito, me eximo com a justificativa de que isso é apenas um problema dela. Tolice se você também pensa assim e “lava suas mãos”. A maioria das vezes ela compensa com o gasto uma falta. Minha falta. Mas, é sempre mais fácil apontar o outro. Foi ela quem “pisou”. É dela o problema, não tenho nada com isso.
Não é diferente quando acredito que poderia ganhar mais do que estou ganhando. Para isso a justificativa é de que a empresa não reconhece o meu talento. Consequentemente sem este reconhecimento não há motivo para me remunerar a altura. Tudo culpa deles.
Sei que olhar, ou melhor, encarar com indignação minhas próprias falhas é um exercício de grande disposição e sempre muito dolorido. Ainda que também saiba que só encarando com esta coragem resolvo os conflitos.
Este grupo que participo e que adora arranjar “pano pra manga” parece sempre ter razão. Não enlouquecem pensando na profundidade de tudo, ainda que uma pisada na caca seja mais do que se pode imaginar.
Limpei, lavei e coloquei para secar. No entanto, sempre apontar o outro como responsável tem um cheiro que impregna. De quem será a culpa?
Por Vinícius Moura
(Reflexões através das aulas Junguianas de Marcos de Santis no Instituto Humanae)
Foto: Altemarketing
Foto de abertura: Eu amo Werneck
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