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A verdadeira face de Zé Maria – Uma fábula dos tempos atuais

Sempre tive grande consideração pelo Zé Maria – trabalhador, bom de bola e engraçado. Um sujeito que parecia comum. Era uma pessoa de convivência diária,…

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Sempre tive grande consideração pelo Zé Maria – trabalhador, bom de bola e engraçado. Um sujeito que parecia comum. Era uma pessoa de convivência diária, trabalhávamos juntos. Pessoa de muitos amores, ou mais ou menos isso. Não que o Zé fosse bonito, mas sim pelo seu critério de escolha, que não era nem um pouco estreito. Isso rendia boas histórias com travestis, senhoras idosas, gays, mulheres catadoras de papel que se entregavam por um real, ou menos, histórias tão absurdas, tão fora de uma curva de normalidade, que chegavam a ser engraçadas.

Sem família, com pouca escolaridade e surpreendentemente com a caligrafia muito bonita, eu o observava e apreciava sua dedicação nas tarefas do trabalho, no capricho de suas arrumações e no seu bom atendimento. Como um sujeito que era tão perturbado, era também tão gentil e de aparência equilibrada? Isso me intrigava.

– O importante é o remedinho pra mente! – Ele dizia sempre quando não tinha uma resposta mais precisa para minhas perguntas acerca de família (pai, mãe, irmãos) e de solidão, já que também não tinha esposa nem filhos.

Zé Maria tinha 52 anos e era um sujeito que vivia o hoje, essencialmente o agora. Não fazia o mínimo cálculo para o amanhã e só relembrava de ontem quando lhe perguntavam querendo ouvir mais uma de suas absurdas e infinitas histórias.

Só podia ser a pinga esse tal de remedinho. Ficava quatro, seis dias sem trabalhar. Se conseguisse um dinheirinho a mais, como 13º salário ou férias, era o fim. Ia se acabar com a mardita sem se preocupar com o emprego e se ele estaria lá à espera dele. Realmente, só vivia hoje.

Certa vez na hora do almoço eu o observei sentado num banco à sombra olhando a rua vazia. Ele olhava ligeiramente para cima… O que pensa um sujeito destes? Será que filosofa? Pensa em construir alguma base? – pensei e por curiosidade quis saber se ele tinha uma resposta.

Fui me aproximando e perguntei:

– O que foi Zé? O que está vendo?

-Aquele tênis! – E apontou para um par de tênis pendurado pelos cadarços no fio de alta tensão.

– Um All Star! O que tem?

– Um está sem bico e o outro furado na sola. Que triste fim!


Foto: Yashvé Pérez

Uau! Será que Zé estaria pensando na linha de tempo da vida e as conseqüências disso? Afinal, ele ter reparado que o tênis era um All Star, uma marca que transfere status e prestígio ao seu dono. Seu fim trágico, neste caso, um furado e outro sem bico. Ambos lançados por vadiagem nos fios era algo muito significativo.

Ele continuou a conversa:

– Há pouco pousou uma pomba ao lado.

– E o que tem? Perguntei.

– Parecia desesperada, você sabe que as pombas vivem com seus pares até a morte, não é? Especialmente os pombos-correio.

– Não, não sabia e ela estava só? Ou era um casal?

– Estava só. Seu par morreu acidentalmente numa armadilha de pássaros. Estava desesperada, inconsolável. Era o que dizia a pomba ao tênis. Em virtude disso a vida dela também estava no fim.

– Dizia? Dizia para quem? – O Zé estaria delirando? Uma pomba conversando? Quanta imaginação!

– Dizia para o tênis. Que para confortá-la também contava sua triste história.

O Zé é um sujeito de quem se podia esperar qualquer coisa, mas uma pomba que conversa com um tênis pendurado nos fios é um pouco demais. Entretanto, acredito que muitas vezes usamos imagens, símbolos e sonhos para elaborar uma questão ou enunciar conflitos que ainda não nos são totalmente claros. Seria isso? Continuei incentivando o assunto com naturalidade:

– Qual? Qual era a história triste da pomba?

– Ele é de uma marca famosa, mas era falsificado e pediu segredo. Foi fabricado num país distante.

– E o que há de triste nisso?

– Como toda criança ele foi carregado de expectativas, a dele é que aquela marca lhe garantiria um lugar de destaque, já nasceria com fama e poder.

– E não foi isso que aconteceu?

– Não! Ele não tinha sequer uma caixa, foi colocado num saco preto e veio pra cá num porão escuro de navio.

– Coisas ruins acontecem com todo mundo… – Aonde esta coisa ia dar? Assustei-me com este diálogo de malucos, mas resolvi dar corda…

– Definitivamente sua maior frustração foi a de ser vendido em feira livre. Não numa loja bacana, onde seria exposto numa vitrine iluminada, num pedestal só dele. Nada disso. Foi numa feira, numa banca de ofertas.


Foto: Garden of Weeden

– E a pomba?

– A pomba perdeu o sentido da vida. Ela foi criada para ser um pombo-correio. Sabe como é?

– Não. Como é o que?

– Pombos-correio voltam para sua amada. O viajante separa a pomba de seu par e leva consigo. Durante a viagem, quando quer mandar a mensagem, amarra na perna e a solta. Ela voa direto para sua casa e sua amada. Sempre volta para sua amada, é assim que funciona.

– E como você sabe disso?

– Um antigo professor me disse, você não estudou isso, não?

Isso eu não tinha estudado, mas continuei perguntando.

– E agora? O que vai ser da pomba sem seu par?

– A pomba não sabe mais o que fazer, sem o par não tem motivação para ir a lugar algum. Vai morrer solitária, mas pode ser que faça uma amizade solidária com o tênis e aos poucos refaça sua vida.

– E o tênis quer esta amizade? São coisas tão distintas?

– O tênis quer. Quer muito. Você reparou que o pé direito está sem o bico?

– Sim, reparei nisso.

– Pois é. Eles estão juntos, mas o direito, sem bico e mudo, não pode falar. Acaba ficando monótono.

Na fantasia do Zé o tênis devia falar pelo bico. Com a mudez só faltava apelar para a mímica…

– A pomba seria uma boa companhia. – Continuei o assunto como a coisa mais comum do mundo…

– Também pensei nisso, um ajuda o outro e a vida segue.

– São histórias tristes mesmo… – Será que o “remedinho pra mente” era só cachaça? Pensei.

– O tênis foi usado para jogar futebol no asfalto e durou só um mês. – Ele continuou.

– Tão pouco tempo?

– Pois é! O furo no solado não foi problema, o grave é o bico ter se soltado num chute definitivo. O garoto perdeu o gol e, revoltado, amarrou um ao outro e lançou nos fios.

– E a pomba, o que disse?

– Estava concentrada em seus próprios problemas, nem sequer teve filhos…

– Que triste, quer dizer que a linhagem da pomba se acaba nela…

– Pois é! Não teve nenhum filhotinho. – Dizendo isso, Zé se calou com um olhar distante.

Ficamos em silêncio olhando o tênis balançando nos fios. A pomba voou.

Voltamos ao trabalho e deixamos lá:

Um par de tênis que depois de usado e abusado fora abandonado e uma pomba sem família para lhe servir de norte.

Depois do expediente ele esboçou um convite para tomar uma. Não aceitei, mas sabia bem as histórias que ele gostaria de esquecer: sua própria família como pomba e sua vida como tênis.


Foto: João Styliano

Foto de abertura: Skate Curiosidade

Por Vinícius Moura – Não se esqueça de Curtir ou comentar!

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