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A forma que me contém – Casamento e traição, por Vinícius Moura

Mais uma vez estávamos sob a sombra da grande figueira. Caminhávamos duas vezes por semana no parque e o banco sob aquela árvore servia de…

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Mais uma vez estávamos sob a sombra da grande figueira. Caminhávamos duas vezes por semana no parque e o banco sob aquela árvore servia de apoio para o alongamento e a conversa, acompanhada com água de coco. Eu a conheci assim, caminhando, sempre no mesmo dia e no mesmo horário. Bonita, elegante e muito simpática. Sempre ríamos com as boas histórias que contava.

Era mesmo tão bonita… Como seria aos vinte e poucos anos? Era inevitável olhar para ela e não se fazer esta pergunta. Usava uma corrente fina com pingente de brilhantes, um par de brincos sofisticados que ajudavam a emoldurar o rosto, que, a cada dia se revelava tão agradável quanto encantador.

Às vezes me falava de seu marido, como foram apresentados pelas famílias. Não, não foram apresentados com propósito de casamento, mas, pela proximidade e amizade, as famílias esperavam e comemoraram com satisfação o enlace. Ele era um bom partido, me descrevia como se pudesse vê-lo ali, materializado na nossa frente, bom caráter, trabalhador, sem vícios… Estes eram os parâmetros para avaliar o paquera naqueles tempos. Sendo assim, ele deve ter olhado aquela loirinha, perguntado sobre seus conhecimentos de costura, cozinha e outras “prendas”. Assim fez sua avaliação do “broto”, suponho.

Ela relatava que o patrimônio conquistado tinha um resultado inegável,  que os elevou ao status de “família vencedora”. Martha, este era seu nome, sabia que por muitos anos não era ela quem estava no escritório ou na produção, trazendo os dividendos do trabalho, mas era como um alicerce que o inspirava, um porto seguro que revigorava suas forças.

Tiveram três filhos e era ela quem estava lá, em casa. Atenta aos primeiros passos e às primeiras palavras. Cuidando da tosse e da febre. Ensinando matemática a um, ao mesmo tempo em que ajudava outro com colagens de recorte de revistas. Chorou com a filha, como se a dor também fosse sua, assim que aconteceu a primeira decepção amorosa. Mas tinha certeza absoluta de que tudo ia se ajeitar, os filhos cresceriam depois daqueles primeiros passos, escolheriam um curso na universidade e mais adiante seguiriam seus planos, inclusive, nesse trajeto as decepções amorosas faziam parte do percurso. E ela concluiu: a vida dos filhos vai ser, como nossa própria vida. Algumas vezes, eles tentam nos enganar, esconder pequenos segredos e travessuras, pensam que conseguem, faço de conta que acredito. Muitas vezes é conveniente, já que não tenho todas as respostas. Com minha mãe fiz exatamente a mesma coisa. Você não?

Quando ela me fazia uma pergunta, eu caía das nuvens, entretido que estava com a suavidade e a delicadeza de suas mãos desenhando as lembranças no ar. Martha tinha cinquenta e nove anos, olhos de um azul profundo e cabelos loiros clareados pelos brancos muito bem cuidados. Vaidosa, notava suas pulseiras e anéis. Sempre com uma maquiagem leve e roupa perfeitamente apropriada. Eu a ouvia e sentia o amor que existia tão vivo, mesmo depois de quarenta anos de convivência: era inspirador, ao mesmo tempo em que me envergonhava de ter rompido com meus relacionamentos nas primeiras dificuldades…

A caminhada no parque se tornou um pretexto para conversarmos sob a figueira. Um dia ela me pareceu distante e com olhar triste. A voz baixa já não expressava a alegria viva. A conversa aquele dia começou com uma dúvida: ela reconhecia que sua vida foi dedicada à família. E ele? Ele se lembraria disso? Enquanto ele estava produzindo os dividendos, alguém teria que estar em casa, acompanhando todos os passos e gerenciando todos os afazeres. Ela nunca se lamentou, nem usou como argumento numa discussão a impossibilidade de ter uma carreira profissional. Isso era um acordo velado, acordo sem palavras, de que a cada um caberia seu papel. Ele se lembraria disso?

– Por que não? – perguntei.
– Não tenho mais certeza, acordos insinuados, quando desfeitos, parecem nunca ter sido feitos. Ele não vai se lembrar, não vai reconhecer nossa história, muito menos minha participação…
– Oras, mas por que ele não reconheceria? – Perguntei confuso, afinal, do que ela estava falando?
– Ele está com uma amante agora – Disse, apertando os olhos, evitando deixar escorrer uma lágrima.

Meu olhar encontrou o fim do mundo. Fiquei decepcionado até comigo mesmo.  Nas minhas lembranças, eu tinha motivos. Muitas das “primeiras dificuldades” dos meus relacionamentos foram provocadas por mim da mesma forma.

– Talvez tenha sido só um deslize… – Falei com a lembrança dos meus próprios “deslizes” que pareciam, até então, sem conseqüências. Estava errado. Isso a confortaria?
– Ela tem 34. Não dá para competir – Foi sua resposta, jogando a toalha e dando a vantagem definitiva para a amante.

Agora era eu que me decepcionava com ela. Não importa que tenha cinquenta e nove anos, poderia ter vinte e cinco, trinta, quarenta, qualquer que fosse a idade, este era um campo de batalha em que sempre estaria em desvantagem. Há sempre alguém mais jovem.

Ela desconhecia seu verdadeiro valor. No fim, fez todo sentido, a pele bem cuidada, as horas de academia e caminhada, as joias caras e roupas… Naquele momento tudo o que era importante e perceptível para ela estava ali, como a maquiagem. Não cabia discutir nem a razão nem os motivos que levaram às consequências de um ou outro lado. A mim ficava cada vez mais claro que nós somos sempre o centro do que nos atinge. Eu enxergava Martha como protagonista de uma história vitoriosa, com seu charme e competência. Para ela, porém, era mais importante a “maquiagem” e a boa forma que exibia, à custa de dedicação e muita disciplina. É assim que acontece: uma criança tem um brinquedo a que ela não dá muita atenção, mas quando um amiguinho olha para este brinquedo e se interessa por ele, aquele que não tinha nenhum interesse pensa: “o que ele está vendo de bacana que eu não vi?”. Basta para que o brinquedo esquecido agora tenha uma promessa de prazer que nunca teve.

Sendo assim, seu marido passou a olhar com muito mais atenção às formas, já que elas eram importantes e não a história que construíram. Justifica o ato? Não. Mas, ali estava o equívoco, a forma, que sempre haverá uma mais nova, mais bonita, mais… Sempre há uma mais, não deveria ser o centro. Que pena que ela não se atentou à importância da sua participação, em tudo que transformou ao seu redor e à sua família, uma história construída e lapidada por anos. Aquilo que temos e fazemos com facilidade é como aquele brinquedo esquecido num canto, não damos valor. Só o percebemos quando outro alguém o enxerga e o deseja. Quem sabe o próximo capítulo seja dedicado a descobrir o que a forma, quando se quebra, nos revela.

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Por Vinícius Moura


Crônica feita a partir de discussões com Marcos de Santis do Instituto Humanae.

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