A culinária do século: Experimente uma receita histórica

 
Em 1795, homens tomam ponche. Imagem: Wikipedia

Entre os livros de minha antiga biblioteca, guardados em um vetusto baú, deparei-me com um volume envelhecido, roído pelas traças e carcomido pelo tempo. Utile a tous- La cuisine du Siecle, por Catherine de Bonnechère, datado de 1895. Ele traz uma série de informações utiles a tous (úteis a todos), como explica a autora, e muitas curiosidades para os comensais do século 21.

Para começar, o prefácio escrito pelo médico de infância de Madame de Bonnechère é apresentado como “Hors-D,Oeuvre a guisa de prefácio”, deliciosamente apropriado para um livro de cozinha que propõe menus elaboradíssimos para almoços e jantares para cada estação do ano.

Além das receitas culinárias, a autora oferece uma série de conselhos domésticos para donas de casa: “mulheres inteligentes, com maior ou menor poder aquisitivo, devem preocupar-se com a elegância da mesa”, aconselha.  “Uma mesa posta com elegância é uma  atração viva para o marido, que não pensará em usufruir sozinho de uma refeição em um restaurante se encontrar em sua própria casa uma mesa requintada”, pontifica a autora.

A essa explicação seguem-se conselhos sobre como “vestir” e decorar a mesa, como servir em diferentes ocasiões e como se comportar à mesa, tanto como anfitriã , como convidada. No capítulo de receitas domésticas, a escritora ensina desde como limpar a prataria, até a tirar o mau gosto de carnes que já não estão muito frescas.

Há sugestões curiosas sobre caça, pois grande parte das aves mencionadas jamais seria sacrificada hoje em dia para alimentar o mais nobre dos nobres, ou até mesmo o Papa… Por exemplo, um pavão! A seguir, transcrevemos uma receita de ponche, não pelos ingredientes propriamente ditos, mas pelo intricado cerimonial descrito por Madame Bonnechère para fazê-lo.


Mulher cozinha na imagem do site La cuisine 

PUNCH au  RHUM

Comecemos a preparar 5 litros deste punch au rhum, o rei dos ponches:
* 2 litros e meio de Rum da Jamaica
* 2 litros e meio de infusão de chá
* 1 quilo de açúcar branco
* 2 limões

Nosso primeiro passo é prepara o chá. “Jamais despeje sobre as folhas uma catarata de água em ebulição, mas proceda metodicamente”, enfatiza a autora”. Em seguida, coloca-se em um bule de chá 60 gramas de chá Hiswin (existirá ainda esse tipo de chá em algum país do mundo, ou em nossas plagas tupiniquins?), verificando que a erva seja de puríssima qualidade; versa-se em cima 1 xícara de água fervendo, tampa-se o bule e alguns minutos mais tarde repete-se a operação. As folhas de chá, sob a influência dessa pequena quantidade de água fervendo, abrem-se, esticam-se, incham e se predispõem a aromatizar o líquido. Alguns minutos  após essa segunda operação, pode-se encher o bule com água bem quente.

Finalmente, passados  5 minutos de infusão,o chá estará pronto para ser despejado na poncheira. Colocando-se a água de uma só vez, agredidas subitamente pelo calor, as folhas de chá queimam e cozinham. Não transmitem à água seu total aroma e sabor: a infusão resultante não tem perfume, nem gosto.” Os ensinamentos da autora sobre o preparo do chá vão mais além. ”O tempo de infusão não deve ultrapassar 5 minutos,” pontifica. “Caso contrário, o tanino e o leve amargo das folhas de chá dissolvem-se na água,” afirma.

“Assimilado o exposto acima, voltemos à preparação do ponche. Antes de despejar o chá quente na poncheira, coloca-se no fundo fatias dos 2 limões e sobre elas o açúcar.Imediatamente após versar o chá sobre os limões é a vez do  rum ser adicionado  aos ingredientes da poncheira. Hélas! Muita atenção! Despeje o rum sobre uma colher grande com raspas de limão e vire cuidadosamente sobre o chá , para que o álcool fique boiando na superfície e possa ser flambado.

Deixe o ponche queimar tranquilamente, sem agitar os ingredientes, até o fogo se extinguir. Só então se pode misturar bem o ponche, para distribuir o açúcar e o óleo essencial do limão. Essa é a única fórmula de se obter uma bebida equilibrada para oferecer em taças apropriadas a seus convidados”, finaliza Madame de Bonnechère.

Que obra prima deve ser esse Punch au Rhum, elaborado com tanta minúcia  á moda do século 19. Segundo o famoso escritor francês André Maurois, um gastrônomo come ou bebe para gozar sensações delicadas, da mesma forma que um conoisseur da pintura aprecia cores um musicista aprecia sons.

Que tal testar essa sábia teoria com a receita de Madame Bonnechère?


No filme de Sofia Coppola, Maria Antonieta descansa entre os doces reais. Fonte: Surroundings

Laïs Pearson: Laïs é jornalista de moda.

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