Tivemos um final de semana muito reflexivo e filosófico. “Ser ou não ser, eis a questão.” William Shakespeare (1554 – 1616). Não que nós, do Fashion Bubbles, estejamos em um conflito de identidade ou enlouquecidos, mas não poderíamos deixar de prestigiar um dos mais importantes clássicos da literatura ocidental. Me refiro a tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (interpretado brilhantemente por Wagner Moura), que certamente é uma das mais conhecidas obras de Shakespeare. A primeira versão escrita entre 1587 e 1589 se perdeu e a versão que chegou até nós foi publicada pela primeira vez em 1603.
Hamlet, príncipe da Dinamarca, descobre que seu pai (o velho Hamlet) foi morto pelo próprio irmão (Cláudio, tio de Hamlet) que casou-se com Gertrudes, a Rainha, após dois, somente dois meses do ocorrido. Cláudio visava obter o trono da Dinamarca que estava sendo ameaçado pelo reino da Noruega.
Diante de seu sofrimento, Hamlet tem uma visão de seu pai (o rei morto), que aparece para contar-lhe o segredo de sua morte e pedir vingança ao filho. Este, transtornado diante da possibilidade de um fratricídio, com interesses muitos claros e ambiciosos, se faz de louco para confirmar se o que ouviu do espírito de seu pai era verdade. (“Há algo de podre no Reino da Dinamarca”).
Hamlet desenvolve um plano muito astuto – utilizando-se da representação da morte do pai por atores de uma companhia de teatro, que encenam Cláudio pingando veneno no ouvido do irmão (velho Hamlet), enquanto este repousava nos jardins do castelo. Diante da reação e dos indícios da conspiração ele segue seu plano até um enfrentamento com a Rainha, sua mãe, acusando-a de traição pelo casamento precoce – “Se você não tem virtude, haja como se a tivesse”. No auge da discussão com a mãe, Hamlet mata por engano o lorde Polônio, que se encontrava escondido atrás de uma cortina escutando toda conversa. (“Há momentos em que servir demais pode ser um risco”).
Muito fiel ao gênero da obra , uma tragédia, o restante é muita morte, desgraça e sofrimento. Em Londres, na época da Rainha Elizabeth I, as chamadas peças de vingança (revenge plays) incluíam assassinatos, loucuras, mortes e aparições sobrenaturais, o que era muito apreciado.
Na seqüência da tragédia, Hamlet é enviado a Inglaterra após ter sumido com o corpo do lorde Polônio, cuja filha Ofélia, pretendente do príncipe, enlouquece e se suicida em razão da rejeição de Hamlet e da morte do pai. Laerte, também filho de Polônio quer vingar a morte do pai e o suicídio da irmã. Ele recebe apoio de Cláudio em uma trama visando matar Hamlet em um duelo através de envenenamento. Entretanto, Hamlet vence os dois primeiro assaltos e Gertrudes, querendo celebrar o sucesso do filho, sem saber da trama planejada por Cláudio e Laerte, toma o vinho envenenado.
Ofélia, segundo Arthur Hughes
No terceiro assalto, Hamlet é atingido pela espada envenenada de Laerte que também é atingido certeiramente no combate. Ao saber da armadilha, diante da morte da mãe e sabendo da sua condenação a morte, Hamlet mata Cláudio ao atingi-lo com sua espada e obrigando-o a tomar o mesmo vinho envenenado que matou sua mãe e finalmente vinga o assassinato do pai.
No final, após a morte de toda a família real dentre muitos outros, Horácio, amigo de Hamlet também quer tomar do vinho envenenado, mas Hamlet o impede, implorando-o que conte tudo o que presenciou visando manter o bom nome dos Hamlet. Certamente, os únicos que se saíram bem foram os Noruegueses que assumiram o trono da Dinamarca, que não contava mais com nenhum membro da família real.
Ufa!!! O texto é muito denso e com reflexões profundas que nos tira o fôlego: “Ser ou não ser, eis a questão”, “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, “Há muita coisa no céu e na terra, Horácio, do que sonha sua filosofia”, “O resto é o silêncio” e “Estar pronto é tudo”, são algumas frases marcantes do texto e que são muito conhecidas na cultura ocidental.
Ser ou não ser, eis a questão
Hamlet foi uma peça que suscitou das mais diversas interpretações e pontos de vistas: moral, filosófico, religioso e psicanalítico. Somente um gênio literário e do teatro como Shakespeare, poderia abordar tão bem e apropriadamente temas sobre fratricídio, relações incestuosa, amor, ódio, loucura, paixão, morte, vida, vingança e muito sangue em dramas psicológicos pensados já na era elizabethana, na virada do século XVII. Em seu livro, Shakespeare – A Invenção do Humano (Ed. Objetiva), o crítico literário americano Harold Bloom, reconhece um gênio que recria gênios como personagens e leva suas críticas e reflexões a um público muito diverso, da corte inglesa até os mais humildes.
Sigmund Freud (1856-1939, pai da Psicanálise), 3 séculos após a primeira apresentação de Hamlet, faz uma reflexão sobre o dilema de Hamlet e o Complexo de Édipo (baseado na tragédia grega escrita por Sófocles por volta dos anos 427 a.C.). A trajetória que Freud percorre para a fundação da Psicanálise é muito intensa e consistente. É muito interessante ver referências de seu trabalho arqueológico da psique humana, já pensadas e refletidas nas obras de Shakespeare.
Em 1900, Freud através da publicação da Interpretação dos sonhos, nos apresenta um acesso ao Inconsciente através da experiência onírica. A genialidade de Freud pode ser comparada a de Shakespeare, mas ele vai além na investigação e teoriza sobre nosso aparelho psíquico de forma tópica (Consciente, Pré-consciente e Inconsciente) e estrutural (Ego, Superego e Id) e posteriormente nos apresenta a existência da pulsão de vida e de morte.
Sigmund Freud
Em sua obra-prima, A Interpretação dos sonhos, Freud descreve o método de análise dos sonhos no texto – O Método de Interpretação dos Sonhos: Análise de um Sonho modelo, onde descreve o Sonho da Injeção de Irma, e nos revela que o sonho é a realização de um desejo de forma disfarçada.
Mais adiante, Freud escreve sobre “Sonhos sobre a morte de pessoas queridas” até chegar as idéias precursoras do Complexo de Édipo. Nesta trajetória, Freud relata a rivalidade entre irmãos, ciúme e desejos maléficos inconscientes em relação a pessoas da família, das quais conscientemente são pessoas amadas. O complexo de Édipo, relata que na primeira infância, as crianças tem desejos de morte dos genitores do mesmo sexo, tidos como rivais no amor (menino quer matar o pai para ficar com o amor da mãe e a menina hostiliza a mãe por tê-la gerado castrada como ela), para posteriormente com o temor da castração desenvolver-se uma identificação com aqueles supostos rivais. Desta forma, para Freud, Hamlet não poderia se vingar de Cláudio, aquele que havia matado seu pai, tendo em vista este ter realizado parte de seus desejos reprimidos desde a primeira infância.
Testemunhando as obras de Shakespeare e Freud, nos parece fácil lidar com o ser humano e não poderia deixar de citar uma parte do texto de Hamlet, que adverte aqueles (profissionais ou não) que se sentem autorizados e preparados o suficiente para compreender e interpretar tamanha complexidade das mais diversas formas:
HAMLET: Não atino bem com o sentido. Mas, não quereis tocar nesta flauta?
GUILDENSTERN: Não posso, príncipe.
HAMLET: Por obséquio.
#actampads1#GIJILDENSTERN: Acreditai-me, príncipe, não posso.
HAMLET: Fazei-me esse favor.
GUILDENSTERN. Não conheço uma só posição, príncipe.
HAMLET: É tão fácil quanto mentir. Com os quatro dedos e o polegar regulais estes orifícios; depois, bastará soprar, para que saia música muito agradável. Vede: aqui estão as chaves.
#actampads1#GUILDENSTERN: Mas não está em mim tirar a menor harmonia, príncipe; não possuo essa habilidade.
HAMLET: Ora vede que coisa desprezível fazeis de mim. Pretendíeis que eu fosse um instrumento em que poderíeis tocar à vontade, por presumirdes que conhecíeis minhas chaves. Tínheis a intenção de penetrar no coração do meu segredo, para experimentar toda a escala dos meus sentimentos, da nota mais grave à mais aguda. No entanto, apesar de conter este instrumento bastante música e de ser dotado de excelente voz, não conseguis fazê-lo falar. Com a breca! Imaginais, então, que eu sou mais fácil de tocar do que esta flauta? Dai-me o nome do instrumento que quiserdes; conquanto voz seja fácil escalavrar-me, jamais me fareis produzir som.
Hamlet e Horácio, por Eugène Delacroix
Hamlet (Shakespeare) e Édipo Rei (Sófocles) são obras que relatam processos de auto-conhecimento, desejos inconscientes e limites tênues entre sanidade e loucura, bem como sentimentos tão humanos, que não mudaram desde muito antes que o próprio gênio Shakespeare pudesse nos apresentar.
Nossa cultura é sem dúvida resultado da soma de referências de muitos que viveram antes de nós. Somos privilegiados por ter acesso a obras e reflexões de gênios como Shakespeare e Freud que respiraram obras primas da trajetória e construção do pensamento ocidental. Sejam os pré-socráticos, os filósofos, os cientistas ou os psicanalistas, todos são marcados por elas, inclusive a impecável interpretação de Hamlet, a qual recomendamos – Teatro Faap, Rua Alagoas, 903.
“…..o resto é silêncio”. “Hamlet de Shakespeare”
” Nunca pensei que fosse fazer Hamlet porque sempre achei que Hamlet era impossível. E é. Vou fazer o meu. Não será o Hamlet perfeito, mas será o nosso ponto de vista, nossa idéia é fazer um Hamlet popular, o que é uma coisa muito louca.” (Wagner Moura)
Por Carlos Silva