Duramente criticado em Cannes e amplamente diminuído entre outros críticos de cinema, Ensaio sobre a Cegueira de Fernando Meirelles, filme que se tornou possível com o consentimento autoral de Jose Saramago, Prémio Nobel da Literatura 1998, é, ao contrário do que dizem, um filme essencial.
Mostra friamente, mas não menos inteligente, a distância do ser humano com o “ser” humano. Nos faz chocar ao perceber a fragilidade da estrutura social, moral e espiritual, por que não?
O ser humano como parte substancial de uma consciência maior, pois pensante que é, vive em um estado de latente anestesia e lisergia de sua própria lucidez. A cegueira discutida a meu ver, é mais mental que visual, embora seja provocada por uma deficiência física.
A visão, um dos cinco sentidos físicos e o mais precioso para a maioria da população, é ao mesmo tempo, seu algoz, que singelamente “apaga” conscientemente as pessoas de sua humanidade. O “clarão” (doença branca como é definida) que a cegueira provoca às vítimas é por falta de palavra melhor, uma grande provocação aos que assistiram ao filme no escuro do cinema.
Alias, o filme todo é uma provocação ao nosso íntimo, à nossa essência verdadeira. Dizem que não devemos cutucar onça com vara curta, e realmente Meirelles o faz com maestria. Cineasta especialista em mostrar todas as mazelas humanas provocadas pelos próprios humanos, como em O Jardineiro Fiel e Cidade de Deus, Meirelles a meu ver é como Gandhi, que libertou seu povo com Ahinsa, a não violência. Tal Ahinsa o coloca numa posição de instigador, sem mover um músculo, somente usando da escrita de luz para produzir imagens combinada à sua inteligência, trabalhando em prol do “esclarecimento” verdadeiro. Mas ele não liberta um à um. Só dá as ferramentas visuais para que o despertar se faça mais rápido.
O filme é como um grande espelho, onde nos mostra nossas francas atitudes perante a necessidade da sobrevivência. Moral? Dignidade? Só existem se pudermos vê-las com olhos cegos. Mentes claras não percebem nem moral nem dignidade escusa e falsa. Tudo padece ao instinto de sobrevivência e tudo perece em frente à fome, ao sexo leviano, à hipocrisia, às virtudes e à violência física.
Confesso que tremi. A angustia era imensa e o desconforto me pareceu vivo. Nos momentos dos gritos das mulheres violentadas às cegas, me coloquei na situação e pude ver com olhos não físicos o horror. O reino do Caos está entre nós, só basta queremos realmente enxerga-lo. É como diz uma publicidade, comparativamente: onde você guarda o seu preconceito?
A história mostra nitidamente isto. Todos os preconceitos perdem valor e razão de ser pela falta de luz aos olhos. Racistas de mãos dadas a negros e amarelos. É bárbara essa provocação. Mostra o quanto os seres humanos podem ser e muitas vezes são incongruentes com sua dita lucidez. Um grande espelho, onde nós podemos nos enxergar nos nossos próprios olhos e ver o reflexo da nossa real verdade, inteligível a todos os outros.
É precisamente esse instinto primordial do homem que revela aos cegos que nesse mundo em que agora vivem as máscaras sociais se fazem desnecessárias; o homem é o que é. Assim, ante a necessidade de estabelecer uma ordem na distribuição da comida, por exemplo, a fim de evitar trapaças, e mediante a afirmação de um dos cegos de que estão a lidar com gente honesta, alguém retruca: “Ó cavalheiro. O que somos de verdade aqui é pessoas com fome”.
É um filme catártico aos que souberem ver, mas muitos no cinema saíram cegos e não perceberam a mensagem tão explicita de Saramago através de Meirelles
Um drama. Podem até tecer comentários negativos sobre o filme de Meirelles, mas jamais acusá-lo de trair o original. Meirelles é extremamente fiel ao livro homônimo do português José Saramago e isso conta pontos a favor da adaptação.
Aplausos à Fernando Meirelles e um sentimento de extrema gratidão à José Saramago pela obra. Meu muito obrigado por me fazerem ver com olhos, mente e coração.
Trailers oficiais
“Por que José Saramago hesitou em ver seu romance adaptado. E por que ele gostou do filme”.
Houve um tempo em que eu respondia que não queria ver a cara das minhas personagens quando me chegavam pedidos de adaptação de romances meus ao cinema. Digamos que eu era então uma espécie de radical da escrita: o que não passava pela palavra posta num papel simplesmente não existia. Fernando Meirelles foi uma das vítimas desta intransigência. Quando o Ensaio sobre a Cegueira foi publicado no Brasil, salvo erro em 1995, imediatamente me escreveu para manifestar o seu interesse em adaptá-lo. Teria sido o seu primeiro filme, antes de Cidade de Deus, antes de O Jardineiro Fiel, se não tivesse esbarrado com o muro da resistência do autor a conhecer os actores que iriam dar consistência e outra realidade às figuras desenhadas pela sua imaginação. Não me lembro do que sucedeu depois. Escrevi a Fernando expondo-lhe as minhas razões? Não lhe escrevi sequer, deixando que o silêncio respondesse por mim? Melhor do que eu, ele o saberá. Ao autor do livro só lhe resta pedir desculpa e agradecer a sua generosidade de espírito, uma generosidade que lhe permitiu aceitar a minha recusa sem a menor acrimónia. Tanto mais que, agora sim, já conheço a cara das minhas personagens. Será preciso dizer que gostei delas? Será preciso dizer que gostei, e muito, do filme? Nunca esquecerei a tremenda emoção que experimentei ao ver passar por trás de uma janela, em fila, as mulheres que vão pagar com os seus corpos a comida que lhes havia sido sonegada, a elas e aos seus homens. Essa imagem resume, para mim, todo o calvário da existência da mulher ao longo da História.
José Saramago
Extraído da Revista Veja, edição 2077, do dia 10 de setembro de 2008.
José Saramago assiste Ensaio Sobre a Cegueira
Por Diego Carvalho